Resumo do Livro: De
Mãos Dadas Com Deus
Muriel Elisa Távora
Niess Pokk
A CHEGADA DE RITA
Numa manhã fria de
abril, após uma cesariana, nascia aquela que iria transformar para sempre a
minha vida, em todos os sentidos.
Eu acabara de
voltar da sala de cirurgia, quando entrou apressadamente em meu quarto um
médico que, identificando-se como pediatra, indagou pelo meu marido, dizendo
que precisava falar urgentemente com ele.
Meu marido havia
saído. Mas, preocupada com a saúde da minha filha, disse ao médico que ele
poderia falar comigo mesma.
Ele, então, disse:
– Eu queria falar
com seu marido, mas já que ele não está vou falar com a senhora.
E, sem nenhuma
delicadeza, proferiu a inesquecível frase:
– Sua filha é
mongol.
Sem querer
acreditar no que eu estava ouvindo, mesmo sabendo o que era uma criança
“mongol” – naquele tempo essa era a expressão utilizada –, perguntei:
– O que é isso?
Ao que ele
retrucou:
– Ela é retardada.
Além de ser retardada, possui problema cardíaco e, por esse motivo, fica roxa
com muita facilidade.
(Foi exatamente
dessa forma que se manifestou).
Totalmente
desnorteada, perguntei-lhe:
– Mas ela se mexe?
Ele respondeu:
– E de que adianta
isso? Olha, não fique muito chateada, pois ela deve morrer logo. Criança com
essa síndrome, e ainda com problema de coração, não vive muito tempo, talvez
ela nem chegue a sair do hospital.
Dizendo essas
coisas, sem me permitir perguntar mais nada, saiu do quarto na mesma velocidade
com que entrou, sem nunca mais retornar.
O choque foi muito
grande. Eu estava sozinha. Não tinha ninguém para conversar. Cada membro da
minha família tinha seus afazeres e não podia me fazer companhia no hospital.
Meu marido tinha
ido trabalhar, mesmo podendo ter optado por ficar comigo.
Uma dor imensa me
invadiu.
Senti-me
abandonada, senti-me como se eu estivesse em alto-mar agarrada apenas a um
pedaço de madeira, sem terra à vista...
Como uma criança
pequena, chorei desesperadamente.
Não queria
acreditar, não era verdade que minha filha era deficiente.
Esse médico tinha
se enganado, há tantas pessoas que se enganam.
À noite, quando meu
marido chegou, contei-lhe que o médico havia dito que nossa filha era “mongol”.
Por ele não saber do que se tratava, entre lágrimas expliquei-lhe o que isso
significava.
Em nenhum momento
ele me deu um beijo, segurou minhas mãos ou me deu um abraço. Quando terminei
de falar, ele ficou olhando fixamente para mim e, a seguir, falou:
– O que a gente
pode fazer? Paciência!
Sem dizer mais
nada, deitou-se e dormiu.
Eu não podia
acreditar que aquele era o homem por quem tinha me apaixonado.
Bastou olhar para
Carlos, ali, ao meu lado, dormindo naquele quarto, como se nada tivesse
acontecido, para me voltar a angustiante sensação, ter a certeza, pela frieza
de suas palavras, de que ele não me daria apoio algum.
Naquele momento
algo morreu dentro de mim.
Sem conseguir
dormir, chorei e rezei a noite inteira.
Pela manhã, muito
antes do horário normal, Carlos saiu para trabalhar.
Sequer falou sobre
nossa filha, nem mesmo esperou para ver a menina.
RITA EM MEUS BRAÇOS
Às 6h30, trouxeram
minha pequena Rita para que eu pudesse segurá-la. Como eu ainda não podia
levantar a cabeça por causa da anestesia, a enfermeira colocou-a em meus
braços.
Ao sentir seu
corpinho franzino e pequenino junto a mim, percebi o quanto ela era indefesa e
frágil. Segurei suas mãozinhas e falei:
– Estarei sempre ao
seu lado. Nunca vou abandonar você. Nós duas, juntas, vamos vencer todas as
barreiras que surgirem em sua vida. Juntas, vamos vencer tudo e todos.
Com apenas um dia
de vida, Rita pareceu ter compreendido o que eu dissera e sorriu para mim.
Uma força muito
grande invadiu-me naquele momento.
Quando a levaram de
volta ao berçário, percebi que eu não poderia ficar no hospital os cinco dias
recomendados. O tempo era precioso e, quanto antes saísse dali, melhor seria.
Pedi ao médico que
me liberasse para que eu pudesse ir para casa.
Mas Alegando que
não havia completado 24 horas da cirurgia, ele não me liberou.
Ao meio-dia, a
enfermeira trouxe outra vez minha filha para ficar um pouco comigo. Quando ela
saiu, decidi que iria fugir com a Rita.
Não iria deixar
minha bonequinha morrer, como aquele médico dissera.
O tempo parecia
colaborar, fazia muito frio. Vesti meu casaco, coloquei-a debaixo dele e desci
dois andares pelas escadas. Fui pelas escadas porque tive medo de que algum
médico ou enfermeira pudessem impedir minha fuga, se me pegassem no elevador.
Chegando ao andar
térreo, senti o vento forte e gelado que entrava pela porta aberta do hospital.
No momento, não dei muita importância ao fato. Disfarcei um pouco e, tremendo
de medo, saí pela porta central, encontrando, por providência divina, um táxi
ali estacionado.
Ao entrar no
automóvel, tirei minha filha de dentro do casaco. Antes que o taxista pensasse
que eu havia roubado a criança, expliquei o que estava havendo.
Uma dor de cabeça
muito forte começou a me torturar. Conforme o carro balançava, meu cérebro
parecia estar solto, minha cabeça parecia que ia explodir de tanta dor.
Mesmo antes de
chegar ao meu destino, quase não conseguia enxergar mais nada. A dor se espalhara
por toda a minha cabeça e sobre os meus olhos.
Ao chegar à casa de
minha mãe, para pegar meu filho, que ficara aos seus cuidados, não lhe contei a
verdade, disse apenas que eu pedira alta, pois a menina era muito fraquinha e
eu tinha medo de que ela morresse no hospital.
Deitando no sofá da
sala, expliquei-lhe que estava com muita dor de cabeça e que mal conseguia
abrir os olhos. Mamãe foi buscar um travesseiro e um cobertor, fez um chá e
deu-me dois comprimidos para que a dor de cabeça melhorasse.
Mas a dor não
passava e, por esse motivo, fiquei em sua casa, deitada, ali no sofá, por uma
semana.
Passados esses sete
dias, minha mãe se sentou próximo a mim e disse que lá era sua sala de visita e
ela precisava usar o sofá em que eu estava deitada.
Como eu já estava
supersensível, aquelas palavras me magoaram de forma profunda.
Tristemente eu me
indagava: como vou fazer para cuidar de duas crianças pequenas, com essa dor de
cabeça e ainda por cima com os pontos da cirurgia?
Contendo as
lágrimas, levantei-me, me arrumei e vesti meu filho, que ainda estava de
pijama. Despedimo-nos de mamãe e entramos no táxi à nossa espera.
Assim que cheguei
em casa, um grande vazio e uma imensa solidão me invadiram. Sentia-me tão só!
Tinha vontade de chorar, mas segurei as lágrimas para que meu filho não as
visse.
A dor de cabeça e a
dor no corte da cesariana eram muito grandes, minha vontade era deitar, mas
como fazer isso, sabendo que meu menino estava faminto?
Praticamente me
arrastando fui fazer comida para que nós dois nos alimentássemos.
RITA SAIU DA
MATERNIDADE JÁ PRECISANDO DE CUIDADOS ESPECIAIS
Rita saíra da
maternidade muito resfriada. Seu chorinho era muito baixinho, ela quase não
tinha voz. Ficava roxa todas as vezes que chorava e não tinha forças para mamar.
Quando tentei dar o
seio à minha filha, ela o chupava muito suavemente. Percebi que Rita não tinha
força suficiente para sugá-lo. Então colocando o leite do peito numa
colherzinha, tentei dar a ela, mas ela se engasgou.
Ela precisava se
alimentar.
Angustiada, fiz uma
nova tentativa... Coloquei o leite numa pequena xícara e, com um conta-gotas,
fui colocando gota a gota o leite em sua boquinha.
Depois coloquei
Rita e Eduardo na cama. Quando adormeceram, comecei a chorar. Rezando muito que
pedi para Deus me ajudar, para não me desamparar, para não sair de perto de
mim, pois eu só tinha a ELE.
Meu marido sabia
que eu já estava em casa, por isso pensei que ele fosse chegar cedo para me
ajudar com as crianças, mas alegando que estava trabalhando, só chegou de
madrugada, como sempre.
QUEM SABE O MÉDICO
NÃO TINHA SE ENGANADO
Na semana seguinte,
quando já havia tirado os pontos, marquei num laboratório famoso o exame de
nome Cariótipo. Eu precisava ter certeza de que o veredicto do médico era real.
Quem sabe ele não tinha se enganado?
Sem nenhuma
companhia, levei minha filha para fazer o exame.
Quando o mesmo
ficou pronto, fui tomada por uma grande sensação de medo. Meu coração parecia
espremido no peito. Queria que alguém fosse comigo para buscar o resultado, mas
todos estavam ocupados demais, inclusive o meu marido. Ao implorar a ele que me
acompanhasse, ouvi:
– Não dá para ir
com você agora, mas deixa, qualquer dia eu pego esse bendito exame.
Na curiosidade
angustiante em que eu me encontrava, não havia como esperar para outro dia.
Deixei meus filhos
na casa da minha irmã e fui sozinha ao laboratório.
Trazia no coração
uma esperança tênue de que o resultado do exame fosse negativo. Mas,
infelizmente, ao abrir o exame, lá estava escrito em letras maiúsculas:
“PORTADORA DA SÍNDROME DE DOWN”.
Eu queria sair
correndo, mas as pernas não obedeciam. Queria abraçar alguém, mas não havia
ninguém para eu abraçar ou para me abraçar. Mais uma vez, eu estava sozinha
quando mais precisava de companhia.
Só me restava
chorar, e chorei muito, ali mesmo, sem me importar com mais nada.
Quando saí do
laboratório e entrei no meu carro, as lágrimas já corriam silenciosamente.
Comecei a dirigir.
De repente senti como se a vida fosse minha antagonista, como se quisesse me
derrubar... Eu a vi com um olhar de gozação e um sorriso zombeteiro, a me
dizer:
– Eu venci!
Isso começou a me
sufocar, abri a janela do carro, precisava respirar.
Uma raiva imensa da
vida começou a crescer dentro de mim. Com todas as minhas forças eu gritei o
mais alto que pude - durante todo o percurso -, sem me importar se as pessoas
dos outros carros estavam me ouvindo:
“Você, vida, não
vai me vencer. Eu vou vencer você, eu vou vencer você, eu vou te vencer!”.
Depois, já quase
chegando em casa, fui repetindo essas frases, mas sem gritar.
Sabia que a luta
dali para frente seria grande. Mas não sabia com certeza a extensão dessa
batalha.
COMO RITA FICAVA
ROXINHA
Como Rita ficava
roxinha e muito fria, eu a enrolava em cobertores e colocava ao redor dela
várias bolsas de água quente, trocando--as assim que amornavam.
Amigos me
aconselhavam a colocar um aquecedor, mas eu tinha medo de que ela pudesse se
queimar.
Os médicos não me
davam muita esperança quanto ao futuro da minha filha. O que eu ouvia deles era
terrível. Um me disse que ela nunca iria ter dentes, pois não possuía arcada
dentária; outro afirmou que ela nunca iria andar, pois, além da falta de coordenação,
tinha os pés voltados para dentro. Cada vez que ia a um médico, ficava mais e
mais amargurada.
Desisti de
consultar os médicos para avalição de minha filha, quanto à Síndrome de Down,
quando, em uma consulta, um deles me disse:
– Se o exame dela
tivesse dado “mosaico”, ela poderia melhorar, mas, como a senhora pode ver, o
exame deu trissomia 21 total, portanto é muito difícil esperar qualquer coisa
dela.
Saí do consultório
com o coração aos pedaços. Orando, falei para DEUS:
– Deus os médicos
podem ter o conhecimento da Terra, mas eles não têm o conhecimento do Céu.
SENHOR, os homens não têm cura para minha filha, mas o SENHOR tem. Oh! DEUS,
Todo Poderoso, me ensina e me mostra tudo o que existe e que pode levar à cura
da minha filha, ou pelo menos que a faça chegar bem perto da cura.
Andando com ela nos
braços, segurei sua mãozinha e disse:
– Nós vamos achar o
caminho!
E ela novamente
sorriu para mim.
APRENDENDO A AJUDAR
RITA
Deus, na sua
bondade infinita, fez com que eu me lembrasse, repentinamente,
de minha avó. Ela
havia sido enfermeira na Alemanha e curara sua filha de cegueira com
tratamentos naturais.
Busquei seus
livros, todos eles escritos em alemão. Mandei que traduzissem os trechos que
falavam sobre deficiência mental. Ali encontrei ensinamentos que levarei comigo
por toda a vida. E que hoje faço questão de dividir com todos.
Ao ler os textos,
fui decifrando conselhos milagrosos. Verifiquei que os métodos eram lentos e
exigiam muita disciplina. Não me amedrontei. Se minha avó tinha conseguido, eu
também conseguiria.
LENDO AS TRADUÇÕES
FEITAS, APRENDI QUE:
• Cada vértebra
corresponde a uma parte do corpo humano.
• A água tem grande
valor terapêutico.
• Banhos a vapor,
banhos quentes, banhos frios e, muitas vezes, todos esses banhos, intercalados,
fazem verdadeiros milagres.
• Exercícios podem
e devem ser feitos já nos primeiros dias de vida, desde que não haja
contraindicação médica.
• Devemos conversar
com a pessoa que está sendo tratada, sempre lhe assegurando de que ficará
curada, mesmo que essa pessoa seja apenas um bebê.
• A parte digestiva
é uma das responsáveis pelo atraso mental.
• Uma alimentação
natural ajuda muitíssimo, uma vez que desintoxica o organismo, e o organismo
desintoxicado faz o corpo funcionar melhor.
• Chás, ervas e
raízes fazem verdadeiras maravilhas.
• Os enlatados, os
frios e os refrigerantes são os piores inimigos para quem quer ter uma mente
sã.
• Os produtos
colocados nas latas para conservação dos alimentos e os produtos que conservam
os frios envenenam o sangue, atacam o pâncreas, o fígado, a vesícula e,
consequentemente, todo o corpo.
Entendi que, se eu
quisesse fazer algo pela minha filha, tinha de começar pela alimentação e pelos
exercícios.
APLICANDO OS
ENSINAMENTOS
Comecei a fazer o
que o livro ensinava:
1. Massageava o
corpo inteiro de Rita para ativar sua circulação.
2. Massageava a
coluna vertebral, correndo com os dedos indicadores de cima para baixo, dos
dois lados ao mesmo tempo, para massagear cada ramificação.
3. Massageava cada
vértebra. A massagem das vértebras era feita de forma ritmada, com pressões
circulares ao redor dela, e depois eram feitas pressões em cada vértebra de cima
para baixo, começando na nuca e indo até a última vértebra. Tudo com muita
delicadeza e cuidado.
4. Levantava com
muito carinho seus bracinhos e os abaixava.
5. Cruzava-os na
frente do peito e os abria em cruz.
6. Cada perninha
era levantada sem dobrar o joelho e abaixada da mesma forma.
7. Segurava seus
pezinhos juntos, dobrava seus joelhos e os empurrava, fazendo uma leve pressão,
para que eles chegassem perto da barriga. Depois esticava suas pernas
novamente.
8. Enquanto uma
perna ficava esticada, com a outra eu dobrava seu joelho, levando-o até a
barriga – praticamente era o mesmo exercício, só que com uma perna de cada vez.
9. Segurando seu
pé, apoiava a mão esquerda em seu calcanhar e com a direita eu girava seu
pezinho (sempre com delicadeza) para a direita, para a esquerda, para cima e
para baixo.
10. Apoiando suas
costas em uma das minhas mãos e a outra em seu peito, fazia com que se sentasse
e deitasse.
11. Da mesma forma,
segurava sua cabecinha (com muito carinho) e virava-a para a direita e para a
esquerda.
12. Segurava os
dedinhos das mãos e os fazia dobrar-se sobre meus dedos indicadores, aí eu os
puxava delicadamente para que ela aprendesse a segurá-los.
ERA PRECISO
MUITA DISCIPLINA
Era preciso muita
disciplina para cuidar da minha pequena Rita.
Seguindo os
conselhos de minha avó e meu próprio bom senso, todos os exercícios eram
aplicados sempre no período da manhã, e na seguinte ordem:
1ª semana: cada
exercício apenas 1 vez.
2ª semana: cada
exercício apenas 2 vezes.
3ª semana: cada
exercício apenas 3 vezes.
4ª semana: cada
exercício 4 vezes.
E assim
sucessivamente, até chegar à 10ª semana.
Na 10ª semana, cada
exercício era aplicado 10 vezes.
Depois de seis
meses, passei a fazer os mesmos exercícios duas vezes por dia, de manhã e ao
entardecer. E jamais depois das 18 horas.
A coluna é nosso
sustentáculo e por isso deve ser cuidada desde os primeiros dias de vida, para
que se desenvolva forte e sadia. Por isso, ao trocar as fraldas de Rita, em vez
de prendê-las com alfinete, eu as prendia com faixas largas. Começava a enrolar
a faixa pelos quadris e ia enrolando até chegar embaixo dos braços. Usava esse
método para que sua coluna se fortificasse na posição correta.
Depois de ler que
exercícios sobre uma bola ortopédica trariam muitos benefícios para minha
filha, adquiri uma de um metro de diâmetro, para fazer fisioterapia nela.
Uma parte dela eu
enchi no posto de gasolina, mas o restante enchi no sopro, porque, totalmente
cheia, ela não passava pela porta de entrada.
Deitava Rita sobre
a bola e a segurava delicadamente, inclinando a bola para a direita e para a
esquerda, para cima e para baixo.
Mesmo tendo poucos
dias de vida, conversava com ela. Eu lhe dizia:
– Você vai ficar
boa, você é linda, você é minha princesa.
No começo dos
exercícios, Rita não demonstrava nenhuma reação, mas, com o passar do tempo,
começou a fazer menção de virar para o lado oposto daquele para o qual eu
virava a bola. Começou a fazer força com a cabecinha para cima, quando eu
inclinava a bola para trás, e a apoiar levemente as mãozinhas na bola para se
“segurar” quando eu inclinava a bola para frente.
SE NÃO PODIA CONTAR
COM NINGUÉM, COM DEUS EU PODIA CONTAR
Voltei a trabalhar
quando Rita completou quatro meses. Mas isso
não me impediu de
continuar cuidando dela.
Tentei no meu
trabalho que me permitissem sair para levar minha filha aos tratamentos que ela
precisava. Mas meu pedido foi negado.
Se eu saísse em
hora de expediente, seria descontado do salário, e se saísse mais de 3 vezes,
no mesmo mês, me seria cortado o dia. Quando fui falar com o diretor, ele me
disse:
– Se a senhora não
pode trabalhar, saia do emprego.
Como eu iria sair
se eu precisava daquele salário para ajudar na manutenção da casa?
Não me dei por
vencida por não encontrar ajuda no trabalho, nem mesmo por não encontrar uma
pessoa que pudesse levar Rita aos tratamentos adequados. Se não podia contar
com ninguém, com Deus eu podia contar. Nessa noite rezei e chorei, pedi a Ele
que me ajudasse a encontrar um meio de poder ajudar a minha filha.
Na manhã seguinte,
passando por uma banca de jornal, vi uma revistinha em que estava escrito assim
na capa: “Você pode ajudar seu filho com deficiência mental”.
Essas palavras
pareciam uma resposta de Deus para mim. Comprei na hora a revista. Lá realmente
não tinha nada muito útil. Mas eu entendi que era uma mensagem de Deus, e isso
me levou à biblioteca.
Comecei a ler sobre
os métodos usados por profissionais para ajudar pessoas com a Síndrome de Down.
Eu devorava os livros. Muitas vezes, ao invés de pegar apenas um livro, eu
pegava 5, 6, porque queria ler tudo que pudesse ajudar minha filha.
Foi através da
leitura e usando todos os ensinamentos que os livros me forneceram, que me
tornei “psicóloga”, “fonoaudióloga”, “professora”, “nutricionista”,
“fisioterapeuta”, “massagista”, “cozinheira”, etc.
Eu tinha sede de
aprender, por isso li também outros livros, com outros ensinamentos. Li livros
que falavam sobre medicina natural, do-in, impostação de mãos, transmissão de
energias, poder do pensamento, poder da palavra e muitos outros livros.
Foi nessa época que
“peguei” das religiões, conceitos e crenças somente o que achei que era bom
para mim. Bati tudo no liquidificador da vida. E fiz a minha própria religião.
RITA PRECISAVA
DESENVOLVER HABILIDADES ESSENCIAIS:
SENTAR, MASTIGAR, ANDAR
Aos 8 meses,
comecei a sentar Rita no cadeirão, para lhe dar comida.
Mas ela não
conseguia ficar reta e se inclinava para frente, encostando a cabeça em cima do
prato.
Tive a ideia de
colocar uma almofada entre ela e a mesinha do cadeirão. A almofada impedia que
ela se inclinasse para frente, mas não impedia que “caísse” para os lados.
Então peguei duas faixas e cruzei-as em seu peito, amarrando as pontas na parte
de trás do cadeirão.
Aí sim ela ficou
sentada corretamente.
Comecei a dar-lhe
papinha, mas caía tudo para fora da boca, porque ela movimentava sua língua,
empurrando a comida para fora.
Resolvi ajudá-la a
mastigar... Com carinho, empurrava sua língua para dentro da boca, aí colocava
a comida e depois, ternamente, segurava o queixo dela e o impulsionava para
cima e para baixo, simulando a mastigação.
Percebi que o que
eu fazia impedia que sua linguinha saísse da boca totalmente, por isso, a
partir daquele momento, todas as vezes que ela ia comer, eu procedia do mesmo
jeito.
Busquei novamente
ajuda nos livros. O que achei em um deles foi uma massagem específica, que assegurava
dar ótimos resultados. E que ajudaria a manter sua língua dentro da boca,
facilitando, assim, a mastigação.
Comecei a executar
o que era indicado.
A massagem era
feita na mandíbula inferior. Devia começar a partir da articulação e sempre ser
iniciada pelo lado esquerdo.
Como o livro
ensinava, eu começava a massagem com leves pressões no encaixe da mandíbula
esquerda e continuava pela mandíbula inteira, até o encaixe desta, do lado
direito.
A segunda massagem
era feita com movimentos rotativos, nos encaixes das mandíbulas, e ao mesmo
tempo, com leves pressões.
A terceira massagem
era feita com movimentos rotativos nas têmporas.
A quarta massagem
era feita na mandíbula com leves pressões embaixo do queixo. Ela tinha que ser
feita na seguinte sequência:
Começar pelo dedo
mínimo, passar pelo anular, pelo dedo do meio, indo terminar no dedo indicador.
O livro explicava o
motivo para esse procedimento: cada um de nossos dedos tem uma “força”
diferente. O dedo mínimo é o que tem menos força, então, à medida que se muda
de dedo, a pressão aumenta.
Eu aplicava a
sequência explicada milímetro por milímetro em toda a mandíbula inferior. Como
no primeiro exercício, eu começava pelo encaixe da mandíbula, do lado esquerdo,
bem próximo à orelha e ia terminar no encaixe da mandíbula direita, também bem
próximo à orelha.
A quinta
massagem-exercício consistia em abrir e fechar a boca da minha filha, simulando
uma mastigação. A cada exercício era necessário fazer massagens rotativas nos
encaixes das mandíbulas, para evitar que o exercício “abrir e fechar a boca”
provocasse dor em Rita futuramente.
Acrescentei mais
essas massagens às outras que eu já fazia.
COMEÇANDO A ANDAR
Quando achei que
Rita já estava bem firme nas pernas e que poderia começar o treinamento para aprender
a andar, peguei um par de meias de seda e cortei os pés. Sentei Rita no meu
colo, vesti as meias nas nossas pernas - minha e de Rita, juntas-. Depois, com
ela de frente para mim, segurando suas mãos, com seus pezinhos sobre os meus,
fui andando para trás, bem devagar, o que, para ela, significava caminhar para
frente. Fiz isso muitas vezes, até que ela tivesse controle absoluto das
pernas.
Ao completar um ano
e cinco meses, Rita apoiou-se em mim, pedindo minha ajuda para começar a andar
sozinha.
A partir desse dia,
para ajudá-la, eu dobrava, várias vezes, triangularmente, uma frauda de pano e
passava por debaixo de seus braços, segurava as duas pontas em suas costas,
firmando-a para que conseguisse manter-se de pé sozinha.
Nem acreditei
quando vi, finalmente, que ela conseguiu andar sem que eu precisasse segurá-la.
Mas ela dava alguns passos e caía, porque tropeçava nos próprios pés, que eram
virados para dentro.
Quando Rita
completou dois anos e meio, achei que tinha chegado a hora de trabalhar o resto
de sua coordenação.
Fazia tudo como se
fosse uma brincadeira, para ela não se cansar e sempre querer participar.
TRABALHANDO OS
SENTIDOS E A PERCEPÇÃO DE RITA
Passei a ampliar os
exercícios que fazia com Rita. Agora precisava fazer com que ela aguçasse seus
sentidos e a percepção do que estava à sua volta.
CAMPO DE VISÃO E
COORDENAÇÃO
Para aumentar seu
campo de visão e sua atenção, resolvi usar uma lanterna.
Deixava o quarto na
penumbra e, acendendo a lanterna eu dizia:
– Filhinha, cadê a
luz?
E ela ia procurando
onde estava o foco de luz. Aí, quando ela o achava, eu batia palmas e dizia:
– Achoooooooou!
Apagava a lanterna
e a direcionava para outro ponto. Acendia novamente a lanterna e a fazia
procurar novamente o ponto de luz.
Algumas vezes,
colocava o foco da lanterna na parede, atrás dela, para que precisasse se virar
para achá-lo.
Outras vezes
dirigia vagarosamente o facho de luz para cima e para baixo, para frente e para
trás para que ela o seguisse. Fazendo com que ela aguçasse sua atenção.
AUDIÇÃO
Para trabalhar a
audição de Rita, eu tocava um sininho atrás dela, e ela se virava para ver o
que era. Quando ela se virava, eu lhe dava um beijo. E ela ria.
Depois, eu tocava o
sininho do seu lado direito, fazendo-a se virar nessa direção. Após isso,
tocava o sininho do lado esquerdo, para que ela fizesse o mesmo.
Em dias
intercalados, fazendo o mesmo exercício, usei outros objetos como por exemplo,
amassava papel alumínio, batia com a mão num tamborim, batia com uma
colher numa tampa de panela - ou panela-, e também costumava bater palma.
TATO
Para acentuar o
tato de Rita, eu a fazia segurar primeiramente um objeto fino e, logo a seguir,
um objeto grosso; um objeto grande e, logo a seguir, um objeto pequenino.
Delicadamente
passava sua mão sobre uma lixa e depois sobre um pano de veludo; sobre objetos
lisos e depois sobre objetos ondulados; sobre uma bolsa de água quentinha e
depois sobre uma bolsa de gelo. Fazia Rita passar a mão numa bola pequena e
depois, sobre um quadrado, numa flores e depois num bichinho de borracha etc.
PALADAR
Para que seu
paladar ficasse mais apurado, colocava em sua boca pequenina uma pitada de sal,
deixava que ela sentisse bem o sabor e a seguir colocava a mesma quantidade de
açúcar. Outras vezes, fazia a mesma coisa, só que com limão e depois com mel,
colocava em sua boca algo frio e, depois de alguns segundos, dava-lhe algo
quentinho, como exemplo, a mamadeira, colocava um pouquinho de canela em pó na
sua boca e depois, um pouco de cravo em pó etc.
Tudo era feito com
muito carinho para que ela não se assustasse, distinguisse e guardasse bem as
diferenças de sabores.
Olfato
Para ajudar Rita a
melhorar seu olfato eu a fazia cheirar perfume e depois algo com cheiro ruim,
cheirar vinagre e depois cebola, cheirar café e depois chá forte. Assim,
durante os estímulos, ia usando sempre, algo com cheio gostoso e logo depois
algo com cheiro desagradável.
Desta forma ia
trabalhando o olfato de minha filha, para que ele ficasse cada vez mais
apurado.
ENSINANDO RITA A
FALAR
Mesmo fazendo todos
os exercícios que eu lera nos livros, minha filha aos dois anos só falava “pa”
(papai), “ma” (mamãe), “du” (Eduardo), mas mesmo assim esse “du” saía mal
pronunciado, algo como “diu”.
Um dia, chorando,
falei para minha irmã Catarina que eu achava que a Rita nunca ia falar direito.
Ela então me disse:
– Por que você não
usa o método que eu usei para minha filha?
Naquele instante
pensei:
É mesmo, se a
Silvia que é deficiente auditiva profunda, aprendeu a falar, a Rita também vai
aprender. E pensei ainda: Rita pode demorar, mas, se a Silvia conseguiu falar,
sem ouvir, a Rita também vai conseguir falar, porque ela ouve, já é uma
vantagem.
Aceitei mais esse
desafio.
Minha irmã me
passou todos os exercícios que ela fizera com sua menina.
Como minha irmã me
ensinara, eu olhava de frente para Rita e pronunciava bem pausadamente cada
palavra.
Ouvindo os
conselhos de Catarina, eu usava sempre palavras bem fáceis.
Um dia minha irmã
me vendo ensinar Rita a falar, me disse:
– Por que você não
faz como eu fazia com a Silvia? Coloca o dedinho da Rita sobre sua narina e
fala a palavra forçando bem a sílaba nasal. Por exemplo: “nnnãão”. Quando as
palavras forem com “R”, você coloca a mãozinha dela na sua garganta e força bem
o “R”.
Por exemplo:
”rrremédio”. E, se a palavra for com “S” ou com o som de “S”, você coloca o
dedinho da Rita sobre seus lábios e diz sibilando.
Por exemplo:
“ssssssssiiilêncio”.
Assim fiz, durante
meses, mas Rita não falava.
Lembrei-me que a
fonoaudióloga da minha sobrinha usava um espelho, para mostrar a ela a
movimentação da boca.
Pensei: “Mais uma
batalha, será que eu consigo?”
Comprei um espelho
grande. Coloquei-o apoiado no chão.
Sentava-me com Rita
em frente ao espelho e ia pronunciando as vogais, para que ela visse como tinha
que fazer.
Depois que eu havia
falado uma vogal, segurava a boquinha dela e fazia com que ela abrisse a boca da
mesma forma que eu abria a minha.
Mas se ela não
conseguisse, eu a ajudava.
Letra A
Enquanto ela emitia
o som da letra A, para ajuda-la a abrir melhor a boca, eu colocava meu dedão e
o meu dedo indicador dentro da boquinha dela. Enquanto o meu dedo indicador se
apoiava nos dentes superiores, o polegar empurrava, com delicadeza, a mandíbula
para baixo.
Letra E
Para falar a letra
E, com delicadeza, eu comprimia e empurrava, as laterais de seus lábios,
fazendo-os abrirem-se num pequeno sorriso.
Letra I
Para falar a letra
I, fazia o mesmo procedimento que o da letra E, mas, desta vez, fazia Rita
abrir mais o sorriso e fechar mais a boca.
O MEU PEQUENO
AJUDANTE
Um dia estou na
cozinha fazendo o jantar e ouço meu filho falando AAAAAAAA, OOOOOOOOOO, UUUUUUUUU,
IIIIIIIIII, EEEEEEEEE.
Achei que ele
estivesse brincando sozinho na frente do espelho.
Fui até a sala para
vê-lo. A cena que presenciei me deixou muito emocionada: ele estava sentado ao
lado da Rita, em frente ao espelho, ensinando-a a pronunciar as vogais. Ele
sempre ficava vendo eu fazer esses tipos de exercícios, mas sempre achei que
ele apenas olhava por olhar. Mas não, o meu pequeno olhava para aprender e me
ajudar.
Muito trabalhei com
a minha filha para que ela falasse, mas ela não falava. Cheguei a levá-la para
fazer audiometria, pois achava que ela não falava porque não escutava bem. Mas
graças a Deus deu tudo normal.
Não me recordo
exatamente com quantos anos Rita começou a balbuciar, nem me lembro das
palavras que ela só falava uma sílaba. Lembro que sempre que Rita queria água,
apontava para o filtro de barro e dizia: Ga...Ga. Eu apontava para o filtro e
dizia: AAAGUUAAA.
No dia em que Rita
fez 4 anos, ela me pegou pela mão, apontou para o filtro e disse: AAGUUUAAA.
Como se me dissesse: “Mãe, agora eu sei falar.”
Lembro que nesse
momento eu lhe dei um monte de beijos, depois, escondida no banheiro,
muito emocionada, chorei. Agradeci a Deus por minha filha estar falando.
Daí em diante as
palavras corretas começaram a fluir. Dava a impressão de que todas as
palavras que eu havia lhe ensinado, ela as tinha armazenado na memória,
para quando falasse, falar de vez.
Às vezes, como é
normal a qualquer criança, ela não conseguia falar corretamente uma
palavra. Então eu corrigia, e pedia para que ela repetisse a palavra, mas
ela não repetia. Passados alguns dias, ela vinha até mim e falava a
palavra certinha.
A impressão que me
dava era que ela ficava “martelando” mentalmente a palavra correta, até
conseguir decorar, e só então ela a falava.
ESTÍMULOS PARA RITA
Quando Rita
completou três anos e meio, comecei a trabalhar com as cores. Comprei um
boliche de plástico e pintei cada garrafinha de uma cor. Durante meses,
mostrando a ela o pino, falava a cor.
Depois, brincando
com ela, colocava um pino – por exemplo, o vermelho – em pé e dizia:
– A mamãe vai pegar
a garrafinha vermelha!
Corria até a
garrafinha e a pegava. Aí falava para ela:
– Agora é você quem
vai pegar a garrafinha vermelha.
Ela olhava para mim
e continuava sentada no chão. Então eu a levantava, segurava suas
mãozinhas, levava-a até o pino e fazia com que ela o pegasse. Aí eu batia
palmas e fazia festinha para ela, e ela sorria. Passados mais de três
meses de várias tentativas sem sucesso, depois de mais uma tentativa infrutífera,
eu caí em prantos e, olhando
para ela, falei:
– Não está dando
certo. Você não pode compreender o que eu estou pedindo...
Ela me olhou,
levantou, foi até a garrafinha vermelha, pegou-a e me deu. Como se
dissesse:
“Eu posso sim. Não
desista, mamãe, está dando certo.”
Naquele momento eu
a peguei no colo e a abracei e a beijei muito. Sua reação foi uma injeção
de ânimo, ela estava conseguindo entender o que eu estava ensinando.
Após ter aprendido
a cor vermelha, comecei a trabalhar com ela as outras cores. Agora era a
vez do pino amarelo, e assim foi sucessivamente, até ela aprender todas as
cores básicas.
Após ela ter
aprendido, eu fazia diariamente exercícios para que ela não esquecesse
mais as cores. Colocava 2 pinos de cores diferentes – por exemplo, o
vermelho e o amarelo – e dizia:
– Agora, pega o
vermelho.
Recolocava o pino
vermelho e dizia:
– Agora, pega o
amarelo.
DEFINITIVAMENTE SÓ
No quinto
aniversário do meu filho, meu marido me comunicou que estava indo embora
de casa, ele ia morar com outra mulher.
Ele estava me
deixando sozinha, com duas crianças, uma de 3 anos com Síndrome de Down e
um garotinho de 5 anos.
Após dizer adeus
para as crianças, pegou suas malas e saiu.
Sentei no chão e
comecei a chorar. Meu filho me abraçou e falou:
– Não chora, mãe. Eu
estou aqui pra cuidar de você e da Rita.
Ele tinha apenas 5
anos e já se sentia com uma responsabilidade tão grande!
O desespero tomou
conta de mim: como eu faria agora para sustentar sozinha minha casa?
Conversando com um
amigo, ele me disse que havia um escritório de advocacia que estava
procurando alguém que fizesse trabalhos de datilografia em casa.
Fui até lá e, após
contar-lhes minha situação, fui admitida. Pegava os processos após sair do
local em que trabalhava e ficava até tarde da noite datilografando-os.
No Dia das Mães, à
noite, meu filho desceu vestindo seu pijama azul e, ainda sonolento,
disse:
– Mãe, abre as mãos
e fecha os olhos.
Quando senti aquele
papel em minhas mãos, achei que fosse algum desenho feito na escola. Qual
não foi minha surpresa quando, ao abrir os olhos, vi escrito: “Diploma de
Datilografia, Eduardo Pokk”.
Mesmo eu o tendo
proibido de pedir dinheiro para meus irmãos, ele havia pedido para o tio
pagar-lhe o curso de datilografia!
Meu filho tirou o
diploma com apenas 8 anos, porque queria me ajudar no serviço que eu
trazia para casa. Ainda me lembro de suas palavras:
– Mãe, agora você
pode dormir que eu vou fazer o seu trabalho.
Claro que nunca
deixei, mas para ele não se sentir frustrado, comprei envelopes e, fazendo
de conta que era algo que meu chefe queria, pedia para que copiasse alguns
endereços da lista telefônica.
DRIBLANDO AS
DIFICULDADES
Mesmo com dois
empregos, a minha situação financeira não era boa, as despesas eram
muitas.
Minha filha ficava
numa escola particular o dia inteiro. Meu filho, que agora tinha 6 anos,
fazia o pré, no período da manhã, numa escola do Estado.
Para poder buscá-lo
na escola, eu deixava de almoçar. Saía do serviço na hora do almoço,
pegava-o e levava-o para casa. Como ele ficava sozinho até eu voltar, eu
trancava a porta da cozinha para ele não mexer com fogo e deixava pão e
uma garrafa térmica com
chocolate. Sempre
que eu ia trabalhar, deixando meu filho sozinho, fazia-o com o “coração na
mão”.
Uma noite, quando
entrei em casa, ao voltar do trabalho, ele me falou:
– Mãe, hoje você
não precisa fazer o jantar, eu já fiz. Ele me levou pela mão até a cozinha
e lá em cima do fogão tinha um arroz todo empapado, feito do jeitinho
dele, e vários pedaços de tomate rasgados dentro de um prato.
Ele me disse:
– Os tomates eu
piquei com as mãos porque você me proibiu de pegar faca.
Não tinha nem como
brigar com ele por ter mexido com fogo.
Só pedi que ele
nunca mais fizesse isso e expliquei que era muito perigoso.
Perguntei como
tinha conseguido abrir a porta da cozinha e ele me disse que eu tinha
esquecido a chave na porta.
Hoje posso afirmar
que foi o melhor jantar de toda a minha vida.
**********
Depois de dar o
jantar para meus filhos, colocava-os na cama e ficava ao lado deles até
dormirem. A seguir, ia para cozinha fazer todos os alimentos que se podia
fazer em casa. Fazia molhos naturais, macarrão, pão francês, queijo
branco, leite feito do grão da soja, pão de queijo e bolo sem ovos. Na
época a Rita tinha alergia a ovos. Por isso fui aprender a fazer coisas
gostosas sem eles.
Em casa não entrava
açúcar branco, porque aprendi que ele não era saudável. Usávamos como
adoçante somente açúcar mascavo ou mel.
MINHA FILHA JÁ
ESTAVA PREPARADA PARA APRENDER MAIS
Para que minha
filha ficasse bem, eu fazia qualquer coisa. Apesar de trabalhar o dia
inteiro, à noite, depois que voltava do serviço ensinava-lhe o que achava
necessário para sua educação.
Para ajudá-la a
conhecer o nome das letras e dos números, precisei ter muita paciência e
perseverança.
Adquiri letras e
números de madeira, em tamanho grande, para que ela pudesse manusear e
sentir seus contornos.
Fiz todos os
exercícios, como se fossem uma brincadeira gostosa.
Comecei pela primeira
letra do alfabeto e pelo primeiro número.
Ao mostrar à Rita a
letra “A”, eu dizia em voz alta o nome da letra.
Depois eu a fazia
passar a mão sobre a letra de madeira e, conforme ela ia passando a mão,
eu ia falando o nome da letra bem devagar, por exemplo: AAAA...
Após ela ter
aprendido, separadamente, todas as letras do alfabeto, coloquei no chão as
letras A e B, uma próxima da outra.
Dei a mão para a
Ritinha, levei-a próximo das letras e, soltando sua mão, em tom de
desafio, lhe dizia:
– Vamos ver quem
pega primeiro a letra A.
Eu e ela
“corríamos” até as letras... Assim que chegávamos mais pertinho delas, eu
fazia de conta que não conseguia me abaixar, deixando, dessa forma, que
ela pegasse a letra primeiro.
Se ela pegasse a
letra errada, eu ignorava esse fato. Eu pegava a letra certa e, mostrando
para ela a letra A, sorrindo, falava: “É esta que é a letra A”.
Fazendo de conta
que estava muito contente, pulava e dizia:
Eu ganhei!
Colocava as letras
A e B novamente no mesmo lugar e recomeçava a brincadeira. Às vezes levava
vários dias até que ela pegasse a letra certa.
E, quando ela
acertava, eu a abraçava, dava-lhe muitos beijos e dizia:
– Parabéns, você
acertou.
Após ela ter
aprendido, separadamente, todas as letras do alfabeto, passei a fazer o
mesmo com os números.
Mostrei-lhe o
número 1. E novamente, enquanto ela também passava a mão sobre ele, eu lhe
dizia:
– Este é o número
1.
Assim fiz com todos
os números até o 9.
Como havia feito
com as letras, colocava 2 números no chão e, brincando com ela, dizia:
– Vamos pegar o
número 1.
Quando ela
conseguiu pegar todos os números acertadamente, comecei a colocar no chão,
lado a lado, o número 1 e a letra A, e pedia que ela fosse buscar o número
1.
E assim fiz com
todos os números e letras.
Parentes e amigos
diziam que eu estava louca. Que era um absurdo eu querer ensinar Rita a
ler com 3 anos, ainda mais sendo ela deficiente.
Mas eu não queria
ensinar a minha filha a ler, eu queria apenas que ela conhecesse o nome
das letras e os números, assim como se ensina a uma criança o nome de
colher, urso, prato, etc.
MÉTODOS QUE EU USEI
PARA RITA APRENDER A FAZER AS LETRAS E OS NÚMEROS
Rita tinha seis
anos quando achei que ela podia aprender a fazer as letras e os números.
Na parede da sala,
bem próximo ao chão, com lápis preto, no tamanho aproximado de 50 cm, eu
pontilhava com flechinhas o formato de uma letra. Depois dava para a Rita
giz colorido e pedia que ela passasse por cima, seguindo as flechinhas.
No começo eu
segurava sua mãozinha, para ajudá-la a ter coordenação suficiente para
contornar a letra. Quando percebia que ela já conseguiria passar o giz por
cima das setinhas, eu deixava que ela o fizesse sozinha. Apenas ia
orientando-a verbalmente.
Os números, eu os
desenhava também no tamanho aproximado de 50 cm, no chão, com giz branco.
Depois pedia para a Ritinha passar o giz colorido por cima do giz branco.
Conforme ela ia
passando o giz por cima do que eu havia feito, eu a estimulava a falar o
nome da letra ou do número.
Quando ela
desenvolveu a coordenação para fazer as letras e os números e já sabia o
nome de cada letra e cada número, passei então para o papel.
Comprei várias
folhas de papel-cartão (tipo de cartolina dura) na cor branca. Dei-lhe uma
caneta vermelha de ponta grossa e pedi a ela que fizesse, na folha,
qualquer letra ou número, no tamanho que quisesse.
Após vários meses
com esse treino, cortei a folha ao meio e usei o mesmo processo.
Rita, depois de
muitas orientações dadas por mim, começou a fazer as letras menores.
Era o que eu
queria. Comecei a fazer, no papel-cartão, linhas separadas por espaço de
15 cm.
Isso ajudava Rita a
ter limite ao fazer uma letra.
E assim, à medida
que ela ia conseguindo fazer as letras dentro daquele espaço, eu ia lhe
dando novos desafios... Ia diminuindo cada vez mais os espaços entre
linhas.
Mudei, então, para
uma folha branca (dessas que usamos para imprimir), e os espaços entre
linhas ficaram com uma distância de 5 cm.
Depois fui
reduzindo ainda mais a largura das linhas, até que ficassem iguais a um
caderno.
Quando passamos
para o caderno, foi muito difícil fazê-la escrever dentro das linhas, foi
preciso muito treino. Fiquei muito desgastada, derramei muitas lágrimas
por achar que ela não ia conseguir.
Muitas vezes eu lhe
perguntei se ela queria parar de fazer os exercícios, mas ela dizia que
não, que ia conseguir. Rita, mostrando-se forte e persistente, conseguiu
vencer mais essa dificuldade.
Passamos, então,
para o caderno... Caderno tipo universitário.
ENSINANDO RITA A
LER
De posse de uma
cartolina cor clara, recortei-a em vários quadrados de 5 cm. Escrevi em
letra maiúscula, em cada quadrado que recortei, várias letras repetidas do
alfabeto.
Depois peguei
várias folhas de papel sulfite branca. Coloquei-as na horizontal e escrevi
em cada uma delas, bem no meio da folha, com caneta vermelha de ponta
grossa, uma palavra. De posse desse material que havia feito, sentei-me no
chão com Rita e começamos a “brincar”.
Coloquei a folha
com o nome a ser trabalhado no chão em frente a ela e os quadrados, só com
as letras que formavam a palavra que estava escrita no papel, à sua
direita.
No início eu
colocava os quadrados com as letras, formando a palavra corretamente e
pedia para ela copiar a palavra que eu havia escrito na folha de papel
sulfite.
A seguir pedia para
colocar cada letra, que estava escrita no quadradinho, embaixo da letra
escrita no papel.
Se ela errasse, eu
sorria e dizia:
– Iiih, você não
acertou. Agora é a vez da mamãe.
Eu pegava cada
quadradinho e mostrava para ela que a letra era igual à que estava escrita
no papel.
Depois eu dizia o
nome de uma letra da palavra que estávamos trabalhando, e ela colocava o
quadradinho com a letra certa embaixo da letra da palavra.
Escrevia outra
palavra, novamente colocava os quadrados, só com as letras da palavra
escrita perto dela e recomeçava a brincadeira.
Todas as vezes que
ela pegava uma letra, eu perguntava:
– Que letra é essa,
filha?
E ela respondia
certinho.
No início eu
escrevia sempre palavras bem fáceis, como, por exemplo, cama, sofá, bebê.
Depois que ela
colocava as letras certas, formando a palavra, nós colávamos as letrinhas
ali. E eu a fazia copiar a palavra, logo abaixo da colagem.
Depois procurávamos
juntas em jornais, revistas e propaganda, o nome do objeto. Quando
achávamos escrita a palavra com letras grandes, eu pedia para ela fazer um
círculo em volta da palavra. Então eu recortava a palavra e Rita a colava
na cartolina.
Após ter colado a
palavrinha, estimulava Rita a copiar a palavra novamente, embaixo da
colagem.
Colocava a
cartolina na parede do quarto dela, na parede da sala, da cozinha, da
lavanderia e até mesmo no banheiro. O importante é que ficasse bem visível
e em lugar baixo, para ela sempre ver. Porque entendi que isso a ajudaria
a decorar as palavras.
Conforme ela foi
aprendendo mais palavras, fui cada vez mais aumentando o vocabulário.
Quando ela aprendeu
a escrever bem as palavras, fazendo a mesma “brincadeira”, comecei a
colocar outras letras que não faziam parte da palavra escrita... E
recomeçava o exercício.
RITA E AS ESCOLAS
Rita estava
matriculada no maternal. Um dia a diretora dessa escola mandou me chamar.
Eu fui preocupada, porque minha filha estava numa escola que não era
especial. Quando lá cheguei, mal me sentei e a dona da escola me entregou
uma folha de papel com
muitas assinaturas,
dizendo:
– Isso é um
abaixo-assinado, por favor, leia.
Comecei a ler. Pais
e mães das crianças que frequentavam a classe da Rita pediam que minha
filha fosse retirada da escola. Eles alegavam que a presença de uma
criança “retardada” estava prejudicando seus filhos, pois eles estavam
copiando o comportamento dela. No parágrafo seguinte, estava escrito:
“Ou sai essa menina
mongol da escola, ou retiramos nossos filhos daqui.”
Fiquei “sem chão”,
nunca havia imaginado que as pessoas pudessem ser tão mesquinhas.
Muito triste e
magoada, chorando, peguei minha filha e fui embora.
Onde colocá-la
agora? Nos dias que se seguiram procurei por outra escola que aceitasse
minha menina, mas não encontrei. Eu precisava voltar ao trabalho... Não
podia faltar mais. Foi com amargura que resolvi optar por uma escola
especial. Achei que isso resolveria de vez todos os meus problemas e os
dela.
Num dia chuvoso,
fui à escola especial para conversar com a encarregada, para saber como
minha filha estava se saindo. Enquanto a aguardava, vi ao longe, no pátio,
uma criança sentada no chão, debaixo da chuva. Pensei comigo: “Que raio de
escola especial é essa que nem percebe que uma criança sai da classe?”
Tirei os óculos por
causa da chuva – mas sem eles enxergo tudo turvo – e saí porta afora para
pegar aquela pobre criança que estava sob a chuva. Só quando cheguei bem
perto foi que vi que aquela criança era a minha filha.
Fui falar com a
professora, mas ela com estupidez me disse:
– Coloquei mesmo
pra fora da classe, pra ela aprender a obedecer.
Com minha filha nos
braços fui falar com a diretora, expliquei o que tinha havido e disse:
– A senhora precisa
colocar uma professora especializada, veja como minha filha está molhada.
A diretora, com a
maior calma, me respondeu:
– Se a senhora não
está satisfeita, tire sua filha daqui.
Saí de lá pedindo:
“Meu Deus, meu
Deus, me ajuda, não sei mais o que fazer.”
Chorando e rezando,
pedi a Deus para arrumar uma escola para minha filha.
Dois dias depois
alguém me disse que numa escola do Estado, não muito longe da minha casa,
havia sido criada uma classe especial.
Fiquei contente com
a notícia. Além de ser uma classe especial, era de graça. A escola
especial particular em que Rita estava era caríssima.
Colocando a Ritinha
ali, na escola gratuita do Estado, eu iria ter uma boa folga no meu
orçamento doméstico. Minhas despesas com a escola seriam apenas com o
uniforme e o material escolar.
Feliz, matriculei
minha menina naquele colégio... Agora eu tinha certeza de que estaria tudo
bem.
Mas um dia minha
filha pediu para que eu a tirasse daquela escola especial, dizendo:
– Mãe, não aguento
mais ficar colando papéis e feijões dentro de círculos, ficar colorindo
bichinhos com lápis de cor, por favor, me tira daqui!
Para ficar na
escola especial, ela era “normal”, mas para ficar numa escola regular, ela
era deficiente.
Fui em busca de
outra escola regular. Procurei de escola em escola.
Ninguém a aceitava,
não queriam nem ao menos vê-la. Apenas diziam “não”.
Andei muito, me
cansei muito. Mas sempre pensando: “Se não a querem aqui é porque não é
aqui que Rita vai ser feliz”.
Aos seis anos
consegui matriculá-la na escola estadual que meu filho frequentava. Ali
ela fez o pré-primário.
E ao final do
curso, tirou seu diplominha.
Ela foi aceita no
primeiro ano. Eu estava feliz, finalmente havia achado a escola ideal.
Um dia atrasei-me
para pegá-la. Chegando à escola procurei por ela, e uma menina me disse
que ela havia saído. Sem sentir as pernas, caí. Onde minha filha poderia
estar? Como eu iria achá-la? Sem conseguir me levantar do chão, comecei a
chorar e implorar a Deus
que protegesse
minha filha e a trouxesse para mim.
Algumas pessoas me
ajudaram a sentar num murinho. Continuei minhas orações. De repente, vi
uma senhora entrando na escola segurando a mãozinha da Rita. A emoção
tomou conta de mim, corri, peguei minha filha no colo e, agradecendo,
abracei aquela senhora.
Ela me disse que
minha filha tinha atravessado ruas perigosas e estava bem longe dali. Que
ela reconheceu que Rita era Down e que só pudera trazê-la de volta porque
ela tinha o uniforme com o nome da escola.
Fui falar com a
professora, contei-lhe o ocorrido e perguntei-lhe por que ela não tinha
olhado a minha filha até eu chegar.
Ela me respondeu:
– Não sou babá de
deficiente mental.
A insegurança tomou
conta de mim: e se Rita tornasse a sair da escola?
Tirei minha filha
de lá.
Por isso, sempre
que faço palestras, aconselho os pais e responsáveis a mandarem gravar uma
plaquinha com seu endereço e telefone e pendurarem essa plaquinha no
pescoço de suas crianças.
Isso será de grande
valia, no caso de virem a se perder.
DEIXANDO RITA COM
MINHAS IRMÃS
Sem encontrar uma
escola comum, sem poder pagar uma escola especial e precisando trabalhar,
comecei a deixar minha filha cada dia na casa de uma irmã. Mas Rita era
ágil, muito esperta e aprontava o dia todo, por isso ela precisava de
alguém que a olhasse em tempo integral. Muitas vezes, em meio ao
expediente, recebia telefonemas das minhas irmãs pedindo que eu fosse à
casa delas, pois Rita tinha aprontado alguma.
Na casa de Ruth,
Rita, de posse de uma caixa de fósforos, acendeu vários palitos, um de
cada vez, e caminhando pela residência, foi jogando-os acesos no chão.
Como a casa da minha irmã era toda acarpetada, o carpete ficou todo
queimado. Além desse estrago, ela
poderia ter causado
um incêndio.
Na casa da minha
irmã Catarina, Rita subiu em cima do telhado por uma rampa feita para o
escoamento de água. Minha irmã, desesperada, ligou para o meu serviço e
contou o ocorrido. Saí às pressas.
Preocupada que ela,
com medo de mim, corresse pelo telhado, passei na escola do meu filho e o
peguei para que ele me ajudasse.
Ao chegarmos à casa
da minha irmã, pedi a Eduardo, ainda tão pequeno também, que subisse no
telhado, fosse até Rita e, quando lá chegasse, segurasse-a e sentasse com
ela ali. Assim que meu filho fez o que lhe pedi, subi no telhado... Primeiro
desci Rita, depois o Edu.
Claro que depois
dessas “artes” que minha filha tinha aprontado, não tive mais coragem de
pedir para que nenhuma das minhas irmãs continuasse a cuidar de Rita.
PEDINDO UM CICERONE
A DEUS
À noite, ainda
tensa, rezei muito. Nas minhas preces eu desabafava com Deus, dizia-Lhe
que eu precisava trabalhar, mas trabalhar em paz. Que eu não podia sair
correndo do serviço a todo momento, que eu não sabia mais onde colocar
minha filha.
Pedi a Ele que me
mandasse um cicerone para me ajudar, pois eu não aguentava mais “caminhar
sozinha”.
Dois dias depois, a
empregada da minha irmã disse que sua prima de 19 anos, que tinha vindo de
Minas Gerais, precisava trabalhar, mas não sabia fazer nada.
Pensando que Deus
tinha ouvido minhas preces, pedi a ela que trouxesse a prima para
conversarmos.
Assim que conheci
Maria, uma moça muito simples, mas muito carismática, gostei dela. Parecia
que eu já a conhecia há séculos.
Meio tímida, ela me
disse:
– Olha, dona, eu
não sei fazer nenhum serviço de casa.
– Você sabe olhar
criança?
– Adoro crianças,
sei olhar, sim.
Expliquei à Maria
minha situação financeira, e lhe disse que não poderia pagar o salário que
uma doméstica recebia. O que eu podia lhe dar era apenas dez por cento
daquele valor.
Ela ouviu tudo o
que eu falei e respondeu:
– Eu tendo casa,
comida e um lugar para dormir, está bom.
Pedi que ela fosse
buscar suas roupas e voltasse no dia seguinte.
Ela, mostrando uma
pequenina sacola de papel, disse:
– Eu já posso
ficar, minhas roupas estão aqui.
Ali tinha apenas
duas peças íntimas, uma saia e uma blusa. Foi nesse dia, no mês de
setembro de 1984, que Maria, minha cicerone, entrou em minha vida.
No começo eu ia
trabalhar preocupada, pois não a conhecia e estava deixando aos seus
cuidados os meus bens mais preciosos: minha filha de 4 anos e, no período
da tarde, meu filho de 6 anos.
Na hora do almoço,
eu não almoçava. Saía correndo para pegar Eduardo na escola e o levava
para casa. O fato de Maria ficar também com ele não me preocupava, porque
ele era uma criança dócil e educada.
Dei uma chave para
minha irmã e pedi que, vez por outra, ela passasse em casa para dar uma
olhada e ver como Rita era tratada por Maria.
Uma manhã minha
irmã chegou lá e Maria estava dormindo na minha cama, mas abraçada a Rita,
que também dormia.
No momento em que
ouvi isso, pensei em mandá-la embora, mas não o fiz. Afinal, ela estava
dormindo, mas abraçada à minha filha.
Com o passar do
tempo, vendo sempre Rita bem cuidada, minha confiança em Maria se firmou.
Comecei a trabalhar
em paz. Quando chegava em casa, Rita e Eduardo estavam banhados, de pijama
e já tinham jantado. Muitas vezes, aos sábados e domingos, enquanto eu
fazia os serviços da casa, eu a via brincando, dançando e cantando com minha
menina.
Isso me deixava
feliz.
Algumas vezes,
quando a comida não era suficiente para nós quatro, só dava para as
crianças, envergonhada eu dizia a Maria que arrumasse outro local para
trabalhar, mas ela me dizia:
– Não vou abandonar
a senhora, não. É bom a gente só almoçar chá, porque assim a gente
emagrece.
Naquele dia eu e
Maria não comemos. A comida não dava para os quatro. Do resto dos pratos
das crianças fizemos sopa para o jantar deles.
Em outras
oportunidades, quando os problemas se tornavam grandes e eu começava a
chorar, Maria me abraçava e dizia o versículo 1, do Salmo 23: O Senhor é o
meu pastor, nada me faltará. A seguir recitava-o integralmente.
Com o passar dos
anos, apesar de continuar pagando seu salário, eu não a considerava mais
minha empregada, mas sim minha filha mais velha.
Quando adoeceu de
câncer, mamãe passou um tempo com minha irmã Ruth, depois um tempo com
minha irmã Paulina e, quando sua vida já se esvaía, veio para minha casa.
Maria, essa pessoa maravilhosa, quis dormir no quarto de mamãe. Ficava com
ela, rezava
com ela, lia a
bíblia para ela e a atendia em todas as necessidades.
Um dia, ao ver
mamãe, percebi que ela não estava nada bem.
Abracei-a e ela
morreu em meus braços.
Seu velório foi em
minha casa. O caixão ali exposto em cima da mesa foi uma imagem que nunca
vou esquecer. Quando foi fechada a tampa do caixão, eu desabei. Agora
tinha certeza de que nunca mais a veria.
Depois do enterro,
à noite, eu não conseguia dormir... Quem veio me fazer companhia? Maria!
Ela segurou minhas mãos e disse várias palavras de conforto.
Claro que Maria
também tinha defeitos, e esses defeitos, às vezes, eram difíceis de
aguentar, mas suas qualidades os superavam.
O grande sonho de
Maria era estudar inglês, datilografia e trabalhar em escritório. Eu lhe
dizia que, se um dia a vida melhorasse para mim, eu realizaria seus
sonhos.
Quando Carlos
voltou, a situação financeira melhorou e então eu a matriculei num curso
de inglês. Quando ela desistiu dele, coloquei Maria no curso de
datilografia.
ENSINANDO TABUADA E
SEPARAÇÃO DE SÍLABAS À RITA
Para ensinar
tabuada para a Rita, comprei cartolinas de várias cores. Cada cor
representava uma tabuada. Para cada cor eu cortei 10 quadradinhos de 5 cm
e 10 retângulos de 10 cm de comprimento por 5 cm de altura.
No começo eu
colocava o retângulo com a primeira conta e dois resultados. Por exemplo,
colocava o retângulo com “2 x 1=” e colocava dois quadradinhos, um com o
número 2 e outro com o número 4.
Fazia tudo como se
fosse um joguinho.
E, apontando para
os números da tabuada, perguntava:
– Quanto é 2 x 1?
Aguardava-a colocar
um dos quadradinhos. Se ela colocasse o errado, eu dizia: “Ihh, não
acertou. Agora sou eu”, e colocava o resultado certo.
Embaralhava os dois
quadradinhos e recomeçava a brincadeira.
Quando ela
acertava, eu batia palma e lhe dava um beijo.
Para ensinar Rita a
separar sílabas, achei melhor cortar as cartolinas em círculos para ela
não se confundir com os quadradinhos que usei para alfabetizá-la.
Colocava uma
palavra inteira escrita de forma longa (para caber cada cartolina embaixo
das sílabas) numa folha de papel. Depois mostrava a ela as cartolinas com
a palavra separada.
Dispunha-as
corretamente, bem em baixo da palavra escrita.
Aí embaralhava as
cartolinas e pedia para ela colocar na ordem certa.
Por exemplo, a
palavra PRATO. A cartolina com a sílaba “PRA” ficava embaixo do ‘pra’
escrito e a cartolina com a sílaba “TO” ficava em baixo do ‘to’ escrito.
Como sempre fiz,
fazia tudo como se fosse um jogo.
Quando ela
aprendia, eu passava para outra palavra.
NÃO ERA POSSÍVEL
QUE NÃO ENCONTRASSE UMA ESCOLA
Rita já tinha 10
anos e estava sem escola desde os 7 anos. Eu não conseguia achar uma para
matriculá-la. Não era possível que em São Paulo não houvesse uma escola
regular que aceitasse minha filha, uma onde ela fosse feliz.
Pela primeira vez
desde que Rita havia nascido, começava a me sentir derrotada. Não
aguentava mais ouvir um “NÃO” em cada lugar a que eu ia, em cada escola de
balé, em cada escola de natação, em cada escola de ginástica. Nem mesmo no
clube ou nas escolas da Prefeitura havia lugar para ela.
Mas nesse mesmo
clube e nessas mesmas escolas havia professor para deficientes visuais,
para deficientes auditivos... Menos para deficiente intelectual.
Lembrei-me das
palavras de minha mãe: “Quando a solução não vem da Terra... vem do Céu”.
Aprendi a ter fé e
a rezar com minha mãe. Mas chegou um momento em minha vida em que eu não
conseguia mais rezar, parecia que meu coração estava vazio, que as orações
que sempre fizeram parte do meu cotidiano não tinham mais efeito.
E, numa noite muito
fria, após chorar muito, a única coisa que eu consegui dizer foi: “Senhor,
não consigo mais rezar, minha filha tem 10 anos, precisa e quer estudar,
me ajude!”. E, vencida pelas lágrimas e pelo cansaço, adormeci.
No dia seguinte,
Maria me disse que haviam aberto uma escola regular pertinho de casa, e
prosseguiu dizendo para que eu levasse Rita lá.
Sem nenhuma
esperança, respondi que não estava preparada para ouvir mais um NÃO e,
dizendo isso, pedi que levasse a Ritinha até lá, pois eu me sentia muito
cansada.
Ela prontamente se
dispôs a levá-la. Vestiu Rita bem bonita e lá foram elas.
Não demorou muito e
as duas voltaram. Ambas traziam um largo sorriso. Maria me abraçou e
disse:
– Ela já está
matriculada, você só precisa ir lá para pagar a matrícula e levar os
documentos dela.
Pulei de alegria.
Ajoelhei-me e agradeci ao Senhor por me ter ouvido e reacendido minha fé.
Rita passou a
estudar nessa escola regular. Na classe dela havia apenas 20 alunos.
Achei que estaria
tudo resolvido, eu havia encontrado uma escola que a tinha aceitado e Rita
não teria nenhum problema, pois já estava alfabetizada e já sabia fazer as
contas básicas de adição, subtração, multiplicação e divisão.
Mas não foi como eu
pensei. Passado um mês a diretora me chamou e disse que era melhor eu
colocar Rita numa escola especial, porque ela não prestava atenção na
aula.
Não era possível!
Deus não tinha me dado essa escola para depois a tirar. Eu não aceitava a
ideia de ter que ir procurar outra escola.
Pedi à diretora
mais uma chance. Propus-lhe pegar um dia antes a matéria que seria dada, e
eu mesma ensinaria Rita. Assim, quando ela fosse para a aula, já saberia a
matéria.
A diretora
concordou e, daquele dia em diante, a professora me passava a matéria com
um dia de antecedência.
Eu ia explicando
para Rita as coisas que ela não entendia. Além disso, eu aproveitava e
trabalhava com ela, para que não esquecesse, as continhas de somar,
diminuir, multiplicar e dividir.
Sendo sua
“professora particular”, percebi que muitas coisas que Rita não fazia em
classe não era porque não sabia fazer, mas por que não entendia o que era
para ser feito e também porque não entendia o nome da coisa ou o
enunciado. Por exemplo, a professora
mandou que ela
pintasse o mastro da bandeira, mas ela não pintou.
A professora me
disse:
– A senhora está
vendo? Ela não pode ficar nessa escola, não sabe nem pintar.
Perguntei à Rita,
na frente da mestra:
– Filha, por que
você não pintou o mastro da bandeira?
E Rita me
respondeu:
– Não sei o que é
mastro.
Depois de várias
ocorrências como essa, comecei a ensinar a Rita palavras mais difíceis,
mas muito usadas.
Ensinava a Rita com
muita perseverança, por achar muito importante, português e matemática.
Mas quando surgia alguma coisa que ela não sabia ou entendia, como, por
exemplo, geografia, ciências ou história, trabalhávamos juntas.
Rita terminou o
Ensino Fundamental I com 14 anos, sem nunca repetir um ano sequer.
Ao terminar essa
fase, Rita queria continuar estudando, queria fazer o Ensino Fundamental
II.
PEDI A DEUS QUE
SEGURASSE MINHA MÃO E ME GUIASSE AO CAMINHO CERTO
Ao conversar com a
diretora sobre Rita continuar seus estudos em sua escola, para fazer o
Fundamental II, ela me pediu uns dias para conversar com os professores de
cada matéria.
Quando voltei para
saber a reposta, a diretora me disse com muito tato:
– Infelizmente Rita
não pode continuar a estudar aqui, muitos professores se recusam a dar
aula para ela.
Havia começado tudo
de novo... Eu ia ter a mesma luta de sempre.
Fui de escola em
escola, mas ninguém a aceitava.
Um dia, após ter
saído de mais uma escola que havia recusado Rita, sentei-me no carro e
chorei. Sentia-me muito cansada e sem ânimo para continuar, já era a
décima escola que eu visitara. Fechei os olhos e as lágrimas continuaram a
correr. Conversei com Deus e
pedi a Ele que
ajudasse minha filha. Afinal, ela não pedia riquezas, a única coisa que
ela queria era continuar a estudar. O que qualquer jovem da idade dela
tinha direito, a ela era negado.
Pedi a Deus que
segurasse minha mão e me guiasse ao caminho certo.
Liguei o carro e,
mesmo dirigindo, continuei a rezar.
Apesar de estar
perto de casa e conhecer bem todas as ruas, acabei me perdendo. Parei o
carro, peguei o guia de ruas e desci para ver o nome da rua em que me
encontrava. Caminhei até a esquina para ler a placa com o nome da rua e
poder me orientar.
Chegando próximo à
esquina, deparei-me com uma faixa afixada no muro, ao lado de um portão.
Ali estava escrito:
“Matrículas Abertas
para o Supletivo do Primeiro Grau”.
Enxuguei as
lágrimas, enchi-me de coragem, respirei fundo e fui falar com a direção da
escola.
Expliquei a ela que
Rita era Down. Perguntei se ela aceitaria minha filha.
Ela, com
delicadeza, me explicou:
– Há muitas
dificuldades para a escola ter uma adolescente deficiente mental. Não há
professores vigias nem atendentes especializados, para atendê-la. Além do
mais, ela já é uma mocinha e aqui tem jovem de todas as índoles.
Perguntei-lhe:
– E se alguém
acompanhar Rita todas as noites, a senhora deixaria ela se matricular?
A diretora sorriu e
disse:
– Sim.
Apertando sua mão,
eu lhe agradeci. E ela me perguntou:
– Mas quem irá
acompanhar a sua menina?
Respondi:
– EU!
Contei-lhe sobre
minha experiência como “professora particular” e acrescentei que eu iria,
como ouvinte, todas as noites junto com minha filha, assim ficaria tomando
conta dela.
A diretora olhou
para mim e, com ar de dúvida, perguntou:
– A senhora faria
isso mesmo por sua filha?
Respondi-lhe:
– A senhora não
sabe o que sou capaz de fazer pela minha filha!
Continuando a
conversa, ela me disse que eu não poderia frequentar a classe apenas como
ouvinte, como eu lhe propusera, porque eu iria ocupar uma carteira e
estaria tirando a vaga de alguém.
Continuando, falou
que a única exigência era que eu me matriculasse também.
Pensei comigo:
“Tudo bem. Qual o problema?”
No dia seguinte
levei os documentos da Rita e a matriculei, mas na hora de me matricular
pediram meu boletim do “primário”. Caí na risada e respondi que não tinha
ideia, depois de 40 anos, onde meu boletim poderia estar. Então a
secretária falou que se eu não
tivesse o documento
solicitado pela escola, não poderia me matricular.
Senti o sangue
subir, meu rosto começou a queimar, saí dali e fui falar com a diretora.
Essa senhora
maravilhosa arrumou uma maneira de poder me matricular. Eu teria de fazer
um teste para ver se estava apta. O teste consistia em fazer uma cópia e
quatro contas (de somar, diminuir, dividir e multiplicar).
Muito preocupada,
Rita me dizia:
– Vai, mãe, você
consegue. Eu vou ficar aqui rezando por você.
Essa preocupação
dela me comoveu muito.
Fiz o teste e
entreguei para a diretora. Ela disse:
– Você foi
aprovada.
Rita pulou de
alegria, me abraçou, me beijou muito e disse:
– Parabéns, mãe.
Rita me falava
agora as mesmas coisas que eu lhe dizia quando ela acertava algo, e me tratava
como eu a tratava quando ela conseguia realizar algum exercício.
Matriculei-me.
Podia agora ajudar, ainda mais, minha doce Rita.
Assistindo às
aulas, compreenderia as explicações dadas e explicaria a matéria para ela.
Foi aí e, só assim,
que pude observar mais uma vez as dificuldades
que Rita estava
tendo.
A professora de
português utilizava um vocabulário de palavras pouco usuais; o de história
falava muito baixo; o de ciências falava muito rápido, grudando uma
palavra na outra – até eu, que não tenho deficiência, às vezes perdia o
que ele havia dito; a professora de
matemática dava
aula sem falar, praticamente ficava de costas para os alunos, só
escrevendo na lousa.
Logo no início das
aulas a professora de português dividiu a lousa em três colunas, começou a
escrever na primeira e, ao terminar esta, passou para a segunda, e assim
sucessivamente. Quando a terceira coluna acabou, ela foi até a primeira
coluna e apagou o que havia escrito e começou a escrever outra coisa.
Olhei para o
caderno da Rita, ela ainda estava na metade da primeira coluna. Quando a
professora apagou tudo, Rita, chateada, falou:
– Mãe, eu não tinha
copiado ainda.
Percebi, assim,
mais uma dificuldade de quem tem Down... A lentidão ao copiar.
Contei a ela que eu
havia copiado toda a matéria da lousa e que, quando ela chegasse em casa,
copiaria do meu caderno. E assim fizemos durante o ano todo.
Notei ainda que,
muitas vezes, Rita não entendia o enunciado ou significado de uma palavra
e, por isso, deixava de responder uma pergunta na prova. Notei também que
os professores não faziam o menor esforço para que ela compreendesse a
matéria.
Lembro com clareza
de uma prova de português, em que a professora deu várias palavras que
deveriam ser catalogadas em oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas. Mandou
que os alunos as catalogassem e as colocassem em colunas apropriadas.
Rita fez um círculo
em volta das palavras oxítonas, fez um retângulo em volta das palavras
paroxítonas e um triângulo em volta das palavras proparoxítonas.
A professora
corrigiu a prova dela na mesma hora e deu nota zero. Rita, chorando,
falou:
– Mãe, tenho
certeza de que está tudo certo.
Fui até a mesa da
professora e pedi a prova da minha filha. Conferi, estava mesmo tudo
certo. Mostrei à mestra que cada palavra que estava circulada pertencia ao
grupo das oxítonas, cada palavra que estava dentro de um retângulo
pertencia ao grupo das paroxítonas e que cada palavra que estava dentro do
triângulo pertencia ao grupo
das proparoxítonas.
– Está tudo certo,
por que lhe deu zero?
Ela retrucou:
– Ela não fez o que
eu mandei, não colocou as palavras nas colunas como eu pedi.
Chamei Rita e
perguntei:
– Por que você não
colocou as palavras nas colunas?
E ela me respondeu:
– Mãe, eu não sei o
que é catalogar nem o que é coluna específica.
Eu expliquei para
Rita o que significavam essas duas palavras.
Aí a professora
perguntou:
– Você tem certeza
de que você fez tudo certo, Rita?
E Rita respondeu:
– Tenho certeza de
que está tudo certo. Posso colocar as palavras dentro das colunas?
A professora
deixou. Rita organizou tudo certinho... Tirou nota máxima.
Se eu não estivesse
lá na classe, nunca saberia do ocorrido. Minha filha ficaria com nota zero
porque a professora não quis compreender que ela tinha deficiência
intelectual.
Uma passagem
engraçada.
Esta passagem
engraçada aconteceu durante o tempo em que estudava com Rita, na mesma
escola. Eu não tenho boa memória para a língua inglesa. Rita, ao contrário
de mim, tem excelente memória para esse idioma. Ensinei à Rita todas as
palavras em inglês, para que ela pudesse traduzi-las na prova. Ensinei-a
também como escrever em inglês as palavras dadas.
A parte engraçada
dessa passagem é que Rita saiu-se muito bem e foi aprovada, passou de
ano... E eu? Eu fiquei em recuperação (risos)!
Rita desistiu do
curso supletivo no último ano, não quis mais continuar.
Uma amiga, sabendo
que minha filha havia desistido, perguntou:
– Valeu a pena você
ter se sacrificado tanto?
Eu lhe respondi:
– Valeu a pena sim,
porque minha filha tem a certeza de que pode contar comigo em qualquer
circunstância.
AGORA RITA QUERIA
APRENDER COMPUTAÇÃO
Rita voltava-se a
uma nova modalidade, parecia insaciável de saber, queria aprender
computação, queria saber usar o Word.
Matriculei-a num
curso de computação, mas as dificuldades que eu tivera para que ela
estudasse voltavam novamente. Após ir buscá--la no curso, ela, muito
contrariada, me disse:
– Mãe, eu não quero
ficar fazendo joguinho. Quero aprender a escrever no Word.
Fui falar com o
professor e ele me disse que eu deveria tirar a Rita de lá, pois lá não
havia professor especializado para dar aula para ela.
Eu não sabia nada
sobre computador, mas, por amor à minha princesa, comprei um computador
usado. Seu Windows era o 3.11.
Ainda utilizava um
disquete grande, nem som ele tinha.
Entrei numa escola
de computação. Apesar de ter dito na escola que eu nada sabia sobre
computação, colocaram-me numa classe mais avançada.
No primeiro dia o
professor falou:
– Liguem o
computador.
Eu fiquei
apavorada, não sabia se ligava aquela caixa de ferro (CPU) ou a tela
(monitor). Fiquei com medo que houvesse uma ordem certa e que, se ligasse
errado, poderia danificar o computador.
Então perguntei:
– Professor, o que
eu ligo primeiro, essa caixa ou essa tela?
Todos caíram na
risada e eu fiquei morrendo de vergonha.
O professor fechou
a cara e, sem dizer nada, veio até mim e ligou o computador.
Depois ele disse
que iríamos entrar no Word.
Constrangida,
perguntei:
– Como eu faço
isso?
O professor bufou,
a classe caiu na risada novamente. Um rapaz que estava ao meu lado,
penalizado, me explicou como fazer.
Então o professor
falou que ia fazer um ditado. Pensei: Oba! Eu sou datilógrafa, vou fazer
esse ditado “com um pé nas costas (com muita falicidade”.
No meio do ditado,
o professor disse:
– Agora apertem o
BackSpace.
Fiquei procurando
pelos botões das barras e pelas teclas do teclado, mas nada achei. Na
minha tecla BackSpace, não tinha nada escrito. A tecla só tinha uma
setinha.
Perguntei ao
professor:
– Onde fica essa
tecla ou esse botão?
E ele estupidamente
me respondeu:
– Olha aqui, se a
senhora veio para perturbar a aula, a senhora pode sair, não é benquista
aqui.
Saí da sala
chorando, e foi assim que cheguei em casa. Sentei no chão com as costas
apoiadas no sofá e falei pra Rita:
– Filha, sou burra,
nunca vou aprender computação.
Ela me abraçou e
disse:
– Mãe, você não é
burra, vai aprender sim. Você precisa aprender, eu dependo de você para
aprender Word.
Resolvi contratar
um rapazinho que sabia muito pouco sobre Word, mas ele me ensinou as
coisas principais. Tudo que aprendia, quando ele saía, eu passava para
Rita.
Depois que eu já
estava mais familiarizada com o computador, comprei um livro que ensinava
o passo a passo. Como anteriormente, cada lição aprendida era repassada
para minha filha com todo o carinho.
Quando ela aprendeu
bem Word, ensinei-a a fazer cartões de visita e etiquetas. Foi nessa época
que ela começou a trabalhar em casa fazendo digitação escolar, cartões de
vista e etiquetas e, assim, através do seu trabalho começou a ganhar seu
próprio dinheiro.
Até hoje Rita adora
tudo que se relaciona a computação.
Quando ainda
usávamos o Windows 3.11, eu resolvi entrar num joguinho que a Ritinha
jogava e que eu achava divertido.
Naquela época era
necessário entrar no DOS para se jogar.
Pedi a ela para
abrir o joguinho para mim. Brinquei bastante e, quando cansei, quis sair e
voltar ao diretório C:, mas eu não consegui.
Comecei a reclamar
em voz alta por não acertar, quando Rita se aproximou de mim e disse:
– Mãe, fica calma,
eu te amo. Você tem que primeiro digitar C: e depois apertar o ENTER.
Eu sorri. Quem
estava me ensinando computação agora era ela.
PRIMEIRA COMUNHÃO
Quando nossa igreja
fez o curso de catequese, achando que Rita já estava na idade de fazer
primeira comunhão, quis que ela o frequentasse, mas não me permitiram
fazer a matrícula. A catequista não aceitou porque disse que ela não era
especializada, e o padre
disse que não podia
aceitá-la porque Rita não compreenderia as aulas dadas.
Como eu sou
catequista, disse a ele que eu mesma ensinaria minha filha. Ele concordou.
Mas quando se aproximou o dia da primeira comunhão, o padre me chamou e
falou que ela, por ser Down, não poderia fazer a primeira comunhão com as
outras crianças.
Meu Deus! Até a
própria igreja tinha preconceito contra uma criança Down!
Voltei para casa
chorando.
Minhas irmãs foram
lá falar com o padre e, após elas terem implorado muito, ele disse que faria
algo diferente, uma primeira comunhão especial. Colocaria minha filha
sentada próximo ao altar, num domingo normal.
Para que Rita não
se sentisse sozinha lá no altar, meu filho e minha sobrinha resolveram
fazer primeira comunhão com ela.
Após o evento, eu
me perguntava... Por que não havia curso de catequese para crianças com
deficiência intelectual? Por que elas não podiam fazer primeira comunhão?
Inconformada com
essa situação, de posse do meu atestado de catequista, fui à Cúria. Pedi
ao órgão competente licença para criar em minha igreja um curso de
catequese para crianças com deficiência intelectual. Informei-lhes que eu seria
a professora desses anjos.
Com a autorização
em mãos, no início de 1994, criei no Brasil, ineditamente, o curso de
catequese para pessoas com deficiência intelectual.
Minha primeira
turma se formou em setembro desse mesmo ano.
EU NADA PODIA FAZER
Certa vez, algumas
amiguinhas da Rita, que tinham mais ou menos a mesma idade dela e que não
moravam muito longe de casa, pediram para que perguntasse ao meu marido,
que era motorista profissional, se ele poderia levá-las, de graça, a uma
festa.
Meu marido
concordou, mas pediu que elas viessem à nossa casa, para que ele não
tivesse que buscar cada uma delas em suas respectivas casas.
À noite elas
chegaram de calça jeans e camisetas, trazendo sacolas e seus vestidos
pendurados em cabides. Perguntaram se podiam trocar de roupa e fazer a
maquiagem na sala. Permiti.
Em alvoroço, elas
se vestiam, riam, penteavam-se, pintavam-se e se enfeitavam. Rita, ao ver
aquela alegria toda e ao saber que elas iam dançar, também se vestiu com
seu vestido de festa. Ela pensou que as moças a levariam junto. Todavia,
isso não aconteceu...
Ao ver minha filha
toda feliz arrumadinha para ir dançar, sabendo que suas amigas não iam
levá-la e sentindo dó de Rita, assim que as mocinhas saíram, sentei-me no
degrau da escada e chorei.
Rita perguntou por
que eu estava chorando. Eu, que nunca menti para minha filha, disse que
era por que ela era deficiente. Ela me olhou com seus brilhantes olhos
azuis e disse:
– Deficiente, eu,
mãe?! Isso era quando eu era pequena. Você já me curou.
Ela enxugou minhas
lágrimas e me abraçou. Foi fazer um café gostoso e o trouxe para mim.
BAILE DE DEBUTANTE:
MAIS PRECONCEITO
Minhas irmãs me
convidaram a ir com elas a um clube aonde iam inscrever suas filhas de 15
anos para o baile das debutantes.
Fui. Quando fui
inscrever a Ritinha, que também tinha 15 anos, expliquei que ela era Down
(para evitar dissabores).
Assim que acabei de
falar, a pessoa que fazia as matrículas me disse que ela não poderia
participar. Tentamos argumentar que as primas tomariam conta dela, mas não
adiantou.
Como sempre, eu
tornava a ouvir um NÃO em relação a algo que eu pedia para minha filha.
Saí de lá com as
lágrimas escorrendo. Podem dizer que sou chorona...
E como não ser
diante de circunstâncias assim?
Eu já havia
desistido, mas minhas irmãs Paulina e Catarina deram-me uma sugestão... Levar
Rita vestida com um vestido de baile, mas que não fosse branco, pois
branco era só para as debutantes.
Para ver minha
filha feliz, a contragosto, concordei.
No dia do baile,
quando começaram a chamar as moças para dançar a valsa, e elas foram
formando par com seus cadetes, Rita também quis ir. Com o coração
apertado, expliquei que ela não poderia dançar com um cadete, porque não
fazia parte do grupo de
debutantes.
Seus olhos se
encheram de lágrimas, mas ela nada falou.
Quando a valsa
começou a tocar, Eduardo, inconformado, pegou Rita pela mão, levou-a para
o meio do salão e dançou com ela.
RITA É UM PRESENTE
DE DEUS
Fiquei doente,
sentia-me muito mal. A febre que me acometia era muito alta. Resolvi
dormir no sofá da sala, por ser pertinho da cozinha.
De madrugada,
escutei algo se mexendo no chão e esbarrando no sofá. Acendi a luz e vi
minha Rita deitadinha ali junto a mim.
Acordei-a e
perguntei a ela por que havia se deitado no chão, se tinha, lá em cima, a
sua caminha tão quentinha. E ela me respondeu:
– Mãe, eu vim
cuidar de você. Você está sozinha aqui embaixo e se precisar de remédio ou
água não tem ninguém pra te dar. Eu estando aqui, se você precisar de
alguma coisa, é só me chamar.
Um dia, quando ela
já sabia digitar no Word e imprimir, eu a deixei praticando e fui ao mercado.
Quando voltei, ela me deu uma folha de papel. Nela estava escrito em
negrito, com letras bem grandes:
“OBRIGADA POR VOCÊ
SER MINHA MÃE.”
CARLOS NOVAMENTE EM
CASA
Não lembro o dia,
nem o mês. Só lembro que a campainha tocou.
Olhando pela
janela, vi o meu marido. Ele estava ali, malvestido, magro e com a barba
por fazer. Reaparecia após ter ficado longe por longos anos sem dar
notícias.
Eu não queria abrir
a porta, não queria recebê-lo, mas Eduardo, exultando de alegria, cobrou
de mim a promessa feita.
– Deixa o papai
ficar, você prometeu.
Então deixei que
Carlos entrasse e Eduardo se atirou nos braços dele e ficou abraçando-o. O
pai fez o mesmo, chorou, pediu perdão e Eduardo o perdoou.
Ao ver a alegria de
meu filho, como eu havia lhe prometido, deixei Carlos ficar. Ofereci a ele
almoço. Enquanto comia, nos contava que tinha voltado de carona do Rio
Grande do Sul, pois não tinha dinheiro nem para o cafezinho. Depois, já
sentado no sofá, começou
a chorar e pediu
perdão. Eduardo o abraçou cheio de amor e falou que ele estava perdoado.
Nesse momento, Carlos olhou para mim e perguntou se eu também o
perdoava... Respondi que sim. Então ele me perguntou se podia voltar a
morar conosco.
Ao ver-me
relutante, Eduardo olhou para mim e disse:
– Mãe, deixa o
papai ficar. Mãe, você prometeu que, se um dia ele voltasse, você o
deixaria ficar.
Com pena de Carlos,
por vê-lo em tão mau estado, com pena do meu filho e da minha filha, que
estavam no colo dele, abraçando-o e beijando-o muito, e com pena de mim
mesma, por amá-lo tanto ainda, apesar de tudo que ele havia feito,
deixei-o ficar.
Eduardo, que tinha
parado de crescer, a partir desse dia começou a se desenvolver
normalmente. Segundo o psicólogo, Eduardo voltara a crescer porque, com a
volta do pai, ele se viu livre de uma grande responsabilidade, tirou de
seus ombros a carga de cuidar de
mim e da Rita.
EDUARDO, MEU
PROTETOR
Um dia, ligo do meu
trabalho para casa, ouço uma voz masculina dizer alô. Pensando que havia
ligado errado, meio sem graça perguntei:
– De onde fala?
Do outro lado da
linha, uma risada gostosa:
– Mãe, sou eu, o
Edu.
O tempo tinha
passado depressa, e eu não me dera conta. Meu filho estava com 14 anos e
eu não havia percebido o quanto ele crescera.
Já meu marido não
mudara como dissera, continuava bebendo como outrora. E ainda se sentia no
direito de brigar comigo. Numa dessas vezes, meu filho se colocou entre
mim e ele, dizendo:
– Pai, agora eu sou
grande. Você não encosta a mão na minha mãe!
Senti orgulho do
meu filho, mas ao mesmo tempo muito medo.
Orgulho por ver que
ele era meu corajoso defensor, e medo que acontecesse uma briga entre os
dois.
Daquele dia em
diante, Eduardo continuou me protegendo. Isso fez com que eu o amasse
ainda mais.
Carlos, quando não
bebia, era um homem solidário, trabalhador, responsável, amável, enfim o
homem que sempre amei. Por outro lado, quando bebia, o que acontecia
sempre, se tornava agressivo, tinha ciúme doentio, uma figura patética que
às vezes me dava pena, outras vergonha, outras vezes, ainda, raiva.
Pensava o que seria
de nossa família vendo-o embriagado, jogando comida no teto e me ofendendo
profundamente. Tinha vontade de largar tudo, jogar tudo fora, sumir...
Mas como sumir?! Se
o Eduardo, um adolescente lindo, cheio de sonhos e projetos, que, embora
eu não pudesse ajudar a concretizar, precisava da minha força, do meu
incentivo e dos meus conselhos?
Não só na
adolescência, mas também na juventude, quando, às vezes, ficava desanimado
com a faculdade, com a falta de emprego, com a situação insustentável em
casa...
Como sumir se a
Rita necessitava tanto de mim, precisava de mim para defendê-la do
preconceito fortemente enraizado na nossa cultura? Quantas vezes ela
voltava do supermercado, pertinho de casa, chorando, porque alguém tinha
lhe dito “Oi, doidinha...”, “Você é boba” e outras ofensas.
Eu tinha de ter
coragem, eu tinha de lutar contra tudo. Sozinha e desiludida, deixei-me de
lado; desorientada, não pensava em mim.
A SITUAÇÃO
FINANCEIRA MELHOROU
Quando Carlos
voltou a trabalhar e a nossa situação financeira melhorou, a primeira
coisa que fiz foi atualizar o salário de Maria.
Depois a matriculei
no curso de inglês, como ela queria. Mas ela não ficou muito tempo no
curso e logo desistiu. Coloquei-a, então, no curso de datilografia. Nesse
curso ela foi até o fim.
Ao saber que eu ia
fazer minha matrícula e a de Rita no supletivo, ela pediu para ser
matriculada nele também. E assim íamos as três, à noite, estudar.
Ao ensinar a matéria
para a Rita, sentava Maria à mesa e a ensinava também.
Como havia me
aposentado, resolvi realizar mais um sonho de Maria. Apesar de continuar
pagando seu salário, arrumei um emprego para ela no período da tarde.
Ao se casar, Maria
quis que Rita fosse sua dama de honra. Como seu pai morava noutro Estado,
Carlos a levou ao altar. Eduardo, eu e meu marido fomos seus padrinhos. A
sua festa de casamento foi na minha casa.
Coincidência ou
não, quando Rita se casou, quis que Maria fosse sua madrinha de casamento
e que seus filhos, Vitória e Thadeu, então com 5 e 7 anos,
respectivamente, entrassem carregando as alianças.
OS SONHOS DE RITA
Só ouvindo Rita
falar sobre seus sentimentos foi que reparei que ela não era mais criança.
Ela era uma moça, já estava com 17 anos.
Como toda moça,
queria arrumar um namorado. Mas não dependia mais de mim realizar esse seu
sonho. Dependia, agora, apenas do destino. E, por nada poder fazer, eu
ficava imensamente frustrada.
Ela não ia a muitos
locais onde pudesse conhecer rapazes e, portanto, tornava-se quase
impossível seu sonho se tornar realidade.
Quantas e quantas
vezes, enquanto ela desabafava comigo falando de sua solidão, meu coração
de mãe “sangrava” e vinha novamente aquela impotência de nada poder fazer.
Todo o sofrimento
de minha filha me impelia a pensar no que poderia ser feito para ajudá-la.
A cada desabafo dela, eu pedia a Deus que tivesse pena da minha filha,
explicava a Ele que ela só almejava o que qualquer moça almeja: ter um
namoradinho. Eu rezava, rezava muito, pedindo ao Criador que tirasse minha
filha da solidão em que
ela se encontrava.
Acreditei que, se
ela saísse mais vezes, sua solidão diminuiria, e comecei a levá-la a
vários locais, mas, um dia, ao convidá-la para ir ao shopping comigo, ela
meigamente me disse:
– Mãe, você promete
que não fica zangada comigo? Não fica zangada, viu? Mas eu não quero mais
sair com uma pessoa velha.
Como eu poderia me
zangar com ela se compreendia tão bem seus sentimentos, se compreendia tão
bem o que ela queria expressar ao dizer isso?! Sabia que ela me amava,
mas, como todo jovem, queria a companhia de outros jovens.
Os lábios de Rita
foram deixando de sorrir, seus olhos ficaram cheios de tristeza. Ela
compreendia que era diferente, compreendia que os rapazes “normais” não a
olhavam com interesse, e que eles não a iriam namorar por ela ser Down.
Preocupada com ela,
comecei a rezar. A oração sempre fez parte de minha vida, mas daquele
momento em diante se intensificou mais e mais.
Eduardo, que já me
ajudava tanto, e que tantas vezes renunciou às coisas que queria em favor
da Rita, esse filho abençoado, que só me trouxe alegrias, foi chamado para
servir o exército, e lá fez amigos.
Quando estava na
casa de um deles, a campainha tocou: era Giuliana, que vinha chamar seu
irmão. Eduardo, ao vê-la, se apaixonou, o que aconteceu também com ela.
Começaram a namorar.
Certo sábado,
Eduardo entrou na sala, onde me encontrava, com um brilho de felicidade no
olhar. Ele se aproximou de mim, agachou-se, segurou minhas mãos, e disse com
muito tato:
– Mãe, eu e a
Giuliana fomos a uma feira beneficente numa escola.
É uma escola para
pessoas com Síndrome de Down. Lá há muitos rapazes e moças limítrofes. Eu
os vi trabalhando nas barracas, eles são muito espertos e muito alegres.
Mãe, não fica magoada com o que eu vou falar, mas, se você colocar a Rita
lá, ela vai fazer novas amizades e vai ser mais feliz.
E, tirando do bolso
um papel dobrado, continuou:
– Olha, peguei
todos os dados de lá, aqui tem o nome da escola e o telefone.
Percebi, nesse
momento, que meu filho, tanto quanto eu, havia ficado muito preocupado com
a tristeza que tomara conta de Rita.
Dizendo que ia
ligar, agradeci e dei-lhe um beijo na testa.
À noite, quando
todos dormiam, peguei novamente aquele papel e, olhando para o endereço
ali escrito, senti lágrimas quentes correrem pelo meu rosto. Perguntei a
mim mesma de que adiantara ter lutado tanto pela inclusão de minha filha
em escolas comuns, de que adiantara todos os esforços feitos por mim,
ter-lhe dado uma profissão ensinando-lhe computação, ela saber com perfeição
navegar pela internet, mandar e receber e-mails, trabalhar com o
Microsoft Word, fazer digitação escolar, cartões de visita e etiquetas...
De que adiantara a minha luta durante todos aqueles anos pela inclusão
de Rita na
sociedade, se agora eu “precisava” colocá-la numa escola especial para que
tivesse amigos?
Com aquele endereço
em uma das mãos e a foto da minha filha na outra, me ajoelhei e rezei:
– Deus, não importa
meus sentimentos, eles nada valem, mas, por favor, me mostre o caminho que
devo seguir para que minha filha seja feliz.
Após essa prece,
levantei-me e fui para a cama. Lá continuei a rezar.
Como das outras
vezes, depois de muito rezar e chorar, cansada, adormeci.
Pela manhã, acordei
com uma imensa paz, e algo dentro de mim mandava que eu ligasse para a
escola, e assim o fiz.
Durante a
entrevista, dentre outras coisas, fiquei sabendo o valor da mensalidade:
era exorbitante, estava muito além das minhas possibilidades.
Disse à diretora
que não podia pagar aquela importância. Expliquei à minha entrevistadora
que Rita já havia feito o supletivo do primeiro grau, que ela sabia
computação e, portanto, não precisaria da escola para se alfabetizar ou
profissionalizar. Afirmei que ela precisava da escola apenas para ter
amigos. De nada adiantou tudo o
que eu disse.
Aquela senhora não aceitava minha proposta de pagar menos.
Tomada pela emoção,
desabei a chorar. Tudo era sempre tão difícil para mim! Com vergonha e
sentindo-me um pouco humilhada, expus a ela minha situação financeira.
Expliquei-lhe que eu era aposentada, que eu fazia alguns trabalhos extras
para complementar o nosso orçamento doméstico, expliquei-lhe também que
meu marido
e meu filho estavam
desempregados. Demonstrei a essa mulher que jamais poderia pagar aquela
mensalidade altíssima.
Depois de lhe ter
contado tudo isso, pedindo a Deus que me ajudasse, fiz a ela minha última
proposta:
– Rita pode vir
aqui na escola uma vez por semana. Isso irá ajudá-la a conviver com pessoas
jovens como ela e a ajudará a ter novas amizades.
Ao ouvir isso, a
diretora levantou-se e, estendendo a mão para se despedir, falou:
– Vou estudar sua
proposta.
Vendo essa atitude
fria de sua parte, sem muitas esperanças, despedi-me dela.
Todos os dias que
se seguiram eu rezava, e, em minhas orações, pedia a Deus que, se fosse
para a felicidade da minha filha, que a escola ligasse. Alguns dias
depois, ligaram. Pediam que eu comparecesse à escola com Rita... Eles
queriam conhecê-la.
Lá, todos gostaram
muito dela. Ela subiu, foi conversar com a psicóloga.
Após isso,
conversou com mais duas ou três pessoas. Depois pediram que eu e minha
filha aguardássemos uns minutos.
Finalmente duas
senhoras apareceram na sala. Uma levou Rita para conhecer a escola e a
outra pediu para que eu a acompanhasse.
Fomos a outra sala.
Lá, sorrindo bondosamente, essa pessoa me disse que minha menina poderia
frequentar a escola todos os dias e que eu daria uma contribuição mensal,
estipulada como doação à escola.
Fiquei muito
contente e, não respeitando burocracias, dei-lhe um abraço forte.
Quando Rita ficou
sabendo que iria começar a frequentar aquela escola especial, não gostou
da notícia:
–Mãe, eu não quero
estudar lá.
Então eu lhe
respondi:
– Filha, Deus quer
sua presença nessa escola. Eu não sei bem o porquê, mas Ele sabe.
Ela, que aprendeu
comigo a respeitar a vontade de Deus, respondeu:
– Se é isso que Ele
quer de mim, então eu vou.
A escola foi boa
para Rita porque foi através dela que minha filha conseguiu seu primeiro
emprego como estagiária. Trabalhou ali, sem registro, por pouco mais de
onze meses. Se completasse um ano de estágio, eles seriam obrigados a
registrá-la em carteira. E foi por
isso que, apesar de
gostarem muito dela, desligaram-na da firma com onze meses e meio de tempo
de serviço.
Logo surgiu um novo
emprego. Esse ela adorava. Lá ela foi registrada em carteira logo que
começou a trabalhar.
O chefe de Rita
gostava muito dela. Quando me chamava para falar do desempenho dela, eu ia
às vezes meio apreensiva, mas sempre ouvia elogios... Ela não faltava, era
pontual e muito responsável.
Nesse segundo
emprego, Rita ficou 5 anos, só saiu de lá porque a empresa mudou para o
interior.
Tanto na primeira
empresa como nessa segunda, Rita trabalhava no período da manhã. Saía do
serviço, vinha almoçar em casa, comia correndo e eu a levava para a
escola.
Apesar de estar
feliz por estar trabalhando e por ter feito algumas amizades na escola,
Rita não conseguia preencher o vazio que sentia em seu coração. Ela queria
encontrar alguém especial, um alguém só para ela... um namorado.
A contribuição que
a escola especial cobrava estava muito alta.
Eu precisava ir até
lá e pedir uma bolsa de estudos, mas estava com receio de ouvir uma
recusa. As coisas que antes não me amedrontavam, com a chegada da idade me
deixavam temerosa.
Eduardo me
perguntou por que eu estava triste. Contei-lhe sobre meus medos. Ele me
abraçou carinhosamente e disse:
– Mãe, eu vou com
você.
Quando entramos na
escola, Eduardo colocou seu braço sobre os meus ombros e apertou-me de
encontro a ele. Eu me senti protegida.
Meu pedido de
solicitação da bolsa foi recusado. Sem alternativa, com sacrifício,
continuei a pagar as mensalidades.
REDES SOCIAIS
Fora da escola Rita
continuava sozinha. Suas amigas não deficientes estavam namorando, somente
ela não tinha namorado.
Como ela já
navegava muito pela internet, achei que teria uma chance de conhecer
alguém através de uma sala de bate-papo.
Juntas, nós
escolhemos a sala “de 15 a 20 anos”.
Logo que ela entrou
no chat, começou a conversar longamente com um rapaz da sua idade. Depois
de uns dez minutos de conversa, feliz, ela virou-se para mim e disse:
– Mãe, ele gostou
de mim! Pediu meu e-mail ou meu telefone.
Eu retruquei:
– Filha, não dá o
telefone, dá só o e-mail, mas, antes de fazer isso, diga-lhe que você é
portadora da Síndrome de Down.
E fiz de conta que
continuava a ler o jornal.
Após mais alguns
momentos no computador, ela se dirigiu a mim:
– Mãe, depois que
eu falei que era Down, ele não falou mais nada.
Ergui meus olhos do
jornal, ia falar alguma coisa, mas calei-me. As lágrimas corriam pelo seu
rosto. Ela levantou-se e foi silenciosamente para o quarto.
Esse mesmo fato eu
vi ocorrer muitas vezes: sempre que ela entrava num bate-papo, contava ao
seu correspondente sobre sua síndrome.
Na última vez em
que isso ocorreu, ela olhou para mim com seus olhos azuis cheios de
lágrimas e disse:
– Não adianta, mãe.
Ninguém quer namorar uma moça Down.
Com o coração
espremido no peito, eu a abracei e lhe disse:
–Filha, nós já
vencemos tantas coisas, vamos vencer isso também.
Segurei suas mãos e
rezei:
– Deus, Todo
poderoso, Vós que olhais pela minha filha, fazei com que ela seja feliz.
Ela merece ser feliz, pois é uma boa filha. Colocai no caminho da Rita um
rapaz que a faça muito feliz.
Rita olhou para mim
e me abraçou.
Mas eu mesma não
sabia como ia fazer para ajudá-la a vencer essa etapa de sua vida. Agora
não dependia mais de mim, e sim do mundo.
À noite ela entrou
no meu quarto trazendo seu travesseiro e me disse:
– Mãe, posso me
deitar com você? Eu estou me sentindo muito sozinha.
Ela deitou-se bem
pertinho de mim e eu a abracei. Apaguei a luz para que ela não visse as
lágrimas que corriam pelo meu rosto.
Como sempre, rezei
e pedi a Deus que me iluminasse e que me mostrasse o que eu deveria fazer
para ajudar a minha Rita.
Na manhã seguinte,
acordei com uma pergunta martelando meu cérebro: será que todos os
deficientes passavam pelo mesmo constrangimento todas as vezes que
entravam numa sala de bate-papo e contavam sobre sua deficiência?
Para ter a resposta
a essa pergunta, resolvi entrar em salas de bate-papo por idade. Entrei numa
“de 20 a 30 anos”. Mentindo minha idade e meu estado civil, comecei a
conversar com um rapaz. Rimos, conversamos muito. Ele dizia que eu era uma
moça maravilhosa, que sempre procurara alguém como eu e que eu tinha uma
excelente
cabeça, que ele
estava me adorando, etc. Depois desses elogios, pediu meu e-mail. Segundo
ele, não queria me perder de vista.
Mentindo-lhe, disse
que era paralítica e que usava cadeira de rodas.
Nesse momento
fez-se uma pausa constrangedora. O rapaz fez mais alguns elogios e saiu da
sala sem sequer dizer até logo.
Não me contentei
com essa experiência, precisava ter outras mais.
Comecei a entrar em
salas de chats diferentes, em todos os horários, inclusive de madrugada. Entrei
em todas as salas por idade (“15 a 20”, “20 a 30”, “30 a 40”, “40 a 50” e
“mais de 50”). Entrei também nas salas de “descasados”, “gays”, “lésbicas”
e muitas outras.
Eu precisava
verificar se a discriminação sofrida pelo deficiente era igual em todas as
salas de bate-papo.
Nas salas de chats,
todas às vezes era a mesma coisa: eu e meu interlocutor falávamos sobre
poesia, sobre nossos sonhos e, enfim, sobre o encanto e desencanto da
vida. Ríamos e conversávamos animadamente, mas, quando ele pedia meu
e-mail, telefone ou que eu
o adicionasse ao
MSN, eu dizia:
– Antes de qualquer
coisa, quero que você saiba que sou deficiente.
A seguir, inventava
uma deficiência.
Logo após eu contar
que era deficiente, meu (minha) interlocutor(a) não pedia mais para
adicioná-lo(a) ao meu MSN, não pedia meu telefone, sequer meu e-mail. E,
se às vezes pedia o e-mail, era apenas por delicadeza, pois nunca
escreveu. Outras vezes, ao contar sobre “minha deficiência”, eu era
“abandonada” sem nenhuma explicação.
Essa experiência
veio me provar que o preconceito nas salas de bate-papo era muito grande.
Acreditei firmemente que, se houvesse uma sala de bate-papo em que os
deficientes não precisassem “esconder” sua deficiência para poder ter uma
amizade, mesmo que virtual, seria o ideal.
EM BUSCA DE UMA
SALA DE BATE-PAPO ESPECIAL
Pensei em fazer um
site, e nele criar essa sala de bate-papo, mas quem saberia da existência
dela? Eu era uma pessoa desconhecida, uma simples aposentada.
Depois de muito
pensar, a solução que encontrei foi criar a sala num provedor em que as
salas de bate-papo fossem bem conhecidas.
Decidi, então,
escrever para vários provedores, entre eles o UOL e o STI. Mandei a ambos
um e-mail relatando as experiências pelas quais minha filha havia passado,
e também as experiências pelas quais passei. Pedi que eles criassem uma
sala destinada aos deficientes.
Do UOL recebia como
resposta apenas mensagens eletrônicas, com números de protocolo ou a
seguinte resposta: “Estamos estudando o assunto”. O STI nunca me
respondeu.
Fiz um
abaixo-assinado, via internet. Nele contei sobre as experiências feitas e
falei sobre minha reivindicação. Encabeçando-o, encaminhei-o aos meus
irmãos, a vários amigos e amigas. Supliquei a eles que me ajudassem, pedi
que o repassassem a seus parentes e
conhecidos. Com
esse exército de pessoas bem-intencionadas, consegui, via internet, 500
assinaturas com nomes e números do RG.
Enviei novo e-mail
para o UOL e o STI, com o abaixo-assinado, mas de nada adiantou. Eles
continuaram a ignorar meu pedido.
Comecei então a
mandar cartas para todos os meios de comunicação, como emissoras de TV,
rádios, jornais, revistas, etc. Nelas, eu falava sobre o preconceito
encontrado e sobre meu sonho de criar a sala para deficientes.
Infelizmente, também nesse caso, fui totalmente ignorada.
Apesar de ter
escrito para muitos e muitos lugares, nunca tive um retorno sequer.
Num sábado,
desanimada, achei que estava na hora de desistir daquela luta insana.
Passei o dia desacorçoada. O tempo passara rapidamente, já fazia quase
três anos que eu começara a lutar.
À noite, Luciana,
uma amiga do Rio de Janeiro, me ligou para perguntar se eu tinha alguma
novidade. Amargurada lhe respondi que não tinha nenhuma, que estava
cansada e que, a partir daquele dia, estava abandonando meu sonho...
Estava desistindo de tudo. Ela disse algumas palavras de ânimo e depois
falou para que eu tentasse
mandar uma carta
para o jornal O Globo.
– Muriel, esse
jornal daqui do Rio de Janeiro publica todas as cartas dos leitores.
Eu lhe respondi, já
chorando:
– Lu, se os jornais
daqui de São Paulo não se interessaram em publicá-la, imagina se um jornal
do Rio de Janeiro vai se interessar.
Estou cansada, não
vou mais lutar, desisto!
Despedimo-nos e fui
me deitar. Já na cama, fiz uma oração:
“Deus, tudo parece
tão difícil, todas as portas estão fechadas e, mesmo eu batendo
insistentemente, ninguém as abre para mim.
Estou muito
cansada, não consigo continuar caminhando, minhas forças se esgotaram.
Deus, se for da Tua vontade que essa sala seja criada, manda Teus anjos
abrirem as portas que estão cerradas”.
Na manhã seguinte,
ao abrir minha caixa postal, encontro um e-mail de Luciana. Ele trazia apenas o
endereço eletrônico do jornal
O Globo. Aquilo
parecia uma resposta de Deus às minhas preces.
Imediatamente
escrevi para eles.
Segunda, 24 de
janeiro de 2000. Abro minha caixa postal e lá encontro uma mensagem de Maria
Eugenia, outra amiga muito querida, também residente no Rio de Janeiro.
Ela me ajudara bastante com a divulgação do abaixo-assinado, chegou até
mesmo a fazer um site solicitando assinaturas.
No
dia 24.01.2000, Maria Eugenia escreveu em seu e-mail:
“Murieeelllll, sua
carta saiu, foi publicada hoje no Jornal O Globo.
Segue a reportagem
para você ler. Parabéns!”.
Logo depois da
publicação a StarMedia entrou em contato comigo.
Após vários
telefonemas e trocas de e-mails, nasceu uma sala de chat para pessoas
deficientes.
Com alegria, dia 7
de fevereiro de 2000, aceitei o convite da StarMedia para participar de um chat
virtual. Emocionada, ia respondendo, uma a uma, as perguntas formuladas
pelos internautas.
Por ter sido
inédita no mundo a criação da sala de bate-papo para deficientes, vários
jornais deixaram estampado o fato em suas páginas, entre eles:
- O Globo
RJ - 07.02.200010 - Leitora ajuda a criar sala de chat só
para deficientes
- Diário
Popular - 14.03.2000 - Libertando-se do Preconceito, pág. 8 e, Mãe
luta por espaço para deficientes na internet, pág. 3, Caderno de
Informática.
Obs.: As duas reportagens saíram no mesmo dia, no mesmo jornal. - O Estado
de São Paulo - 14.02.2000 - StarMedia inaugura sala de chat para
deficientes
- Jornal
SuperAção - março/abril 2000 - Nasce a primeira sala de chat para
portadores de deficiência, pág. 9.
- O Globo
07.02.2000, pág. 4, caderno de informática. Segunda reportagem que
esse conceituado jornal publicou sobre mim.
- A Folha
do Servidor Público - setembro/outubro/2000 - Deficientes possuem
salas de bate-papo, pág. 24.
- Diário
do Nordeste, Ceará, Fortaleza - 28.02.2000 - Bate-Papo.com.br
- Jabaquara
News, SP, jornal semanal - 11/08 a 17/08 de 2000, ano 1, n.19 – Gente
especial na internet - 1ª página - e, Aposentada do Planalto cria
bate-papo para deficientes na internet, pág.5.
- Site
Informática Digital Report - 07.02.2000 – Bate-papo cria sala de chat
especial para deficientes
- Site
Deficiente Eficiente - 13.05.2000 - Mãe luta por espaço
para deficientes na internet
- Site
Clipping - 08.02.2000 - Leitora ajuda a criar sala de chat só
para deficientes
- Constam
também, na ata da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo,
“Votos de Congratulações” pela criação da sala de chat. Requerimento
nº 701, de 2000.
Logo após a
StarMedia ter entrado em contato comigo, o UOL também entrou.
Perguntaram-me se eu ainda queria fazer com eles a sala de chat. Respondi
que ficaria muito feliz e pedi que fosse feita mais de uma sala. Porque a
sala da StarMedia, lotava rapidamente.
Conversando
anonimamente na sala Deficientes, descobri que muitos deles eram
extremamente solitários. Isso me deixou triste.
Para amenizar-lhes
a solidão, quis criar um site de encontros só para eles.
A CRIAÇÃO DE UM
SITE DE ENCONTROS PARA DEFICIENTES
Pedi a meu filho
que fizesse o site de encontros para deficientes.
Mesmo sem saber
muito a respeito de como se faz um site, ele não se amedrontou. Sem medir
esforços, criou o Site Grandes Encontros – www.grandesencontros.com.br –,
em fevereiro de 2000. Através desse site, já ocorreram muitos namoros,
noivados, casamentos e muitas amizades fortes, sinceras e duradouras.
Apesar de o site
ter sido criado para deficientes, ele aceita também inscrições dos que não
têm deficiência.
O site Grandes
Encontros é totalmente gratuito, tanto a inscrição quanto a permanência. O
inscrito pode deixar seu anúncio ali por anos, sem nada pagar.
Muitas pessoas me
dizem que eu não sei ganhar dinheiro, que se eu quisesse poderia ganhar
muito dinheiro com esse site de encontros, que eu deveria cobrar taxa de
inscrição e mensalidade.
Eu lhes respondo:
se for para eu ficar rica recebendo dinheiro dos deficientes... morrerei
pobre!
Na época de sua
criação, o site Grandes Encontros, assim como a sala de bate-papo
Deficientes, foi inédito no mundo. Publicou o fato o site IG
(www.ig.com.br): “Brasil é pioneiro na criação de site
para relacionamentos” – 14.11.2000.
Por causa da
criação do site e da sala de chat, Rita e eu fomos convidadas pelos
Deputados Roberto Engler e Célia Leão, que é paraplégica, a comparecer à
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Lá chegando, fomos
entrevistadas por ambos.
Roberto Engler
convidou-me para comparecer às sessões em favor dos deficientes. Célia
conversou longamente conosco e se interessou por Ritinha e por sua vida.
Depois da criação
da sala Deficientes, eu me senti realizada. Minha filha, assim como outros
deficientes, não precisaria mais se “esconder” para arrumar amigos.
Sentada em frente
ao computador, feliz, Ritinha falou:
– Mãe, agora posso
entrar na sala Deficientes e contar para quem estiver falando comigo que
tenho Down. Não preciso mais me preocupar.
Sorrindo, concordei
com ela.
Ledo engano o meu.
Com tristeza, precocemente descobri, através das novas lágrimas de minha
filha, que os deficientes físicos tinham preconceito contra o deficiente
intelectual.
Entrei novamente em
contato com o UOL e pedi que fizessem uma sala de chat para os deficientes
intelectuais.
Meu pedido foi
atendido. Foi criada a sala de chat “Deficientes intelectuais”, nome
escolhido pelo próprio UOL.
As salas estão
ativas no UOL. Quando a sala tiver menos que vinte
integrantes, poderá
ser visitada gratuitamente, seguindo-se os passos:
1.
http://www.uol.com.br
2. Clique em: “bate-papo”
3. Namoro
5. Escolha:
“Deficientes físicos” ou “Deficientes intelectuais”
Visitei
anonimamente, várias vezes, as salinhas de chat Deficientes, e, sempre que
possível, perguntava aos que ali estavam o que eles achavam da nova sala,
e eles me respondiam:
“Estou muito
feliz”;
“Agora posso falar
livremente sobre minha deficiência sem me preocupar”;
“Aqui me sinto à
vontade”;
“Já fiz algumas
amizades”;
“Encontrei uma
pessoa que se trata no hospital das Clínicas e me orientou a ir lá para
fazer novos exames”;
“Faz mais de 10
anos que não me cuido, agora arrumei uma namorada e vou me cuidar”;
“Quando eu entrava
nas salas de bate-papo comuns, ficava muito constrangido todas as vezes
que precisava falar que era deficiente”.
ENCONTRO DOS
INTERNAUTAS EM SÃO PAULO
Um pouco antes de
completar um mês que a sala Deficientes existia, resolvi fazer um encontro
entre os internautas, para que se conhecessem pessoalmente.
Comecei a anunciar
esse encontro na sala. Muitos confirmaram a presença. Fiz panfletos anunciando
o encontro e os distribuí na escola da Rita. Também os distribuí em outras
escolas especiais.
O evento foi
realizado no dia 28 de fevereiro de 2000, num restaurante que tinha
estrutura para receber pessoas em suas cadeiras de rodas.
O encontro foi maravilhoso,
as mesas reservadas estavam lotadas, havia muitas pessoas, entre elas, um
amigo da escola que Rita frequentava.
Ele era um rapaz
bonito, simpático e Down.
Ao ver Rita, ele,
sorrindo, sentou-se junto dela. Conversaram muito e, vez por outra, riam
gostosamente. Reparei que os olhos de minha filha brilhavam. Eles sempre
foram muito lindos e brilhantes, mas naquele momento traziam um brilho que
eu jamais vira.
Um rapaz não
deficiente, do Rio Grande do Sul, comentou comigo que viera a São Paulo
para conhecer pessoalmente uma jovem que era cadeirante e que conhecera
através da salinha. Apresentando-me a ela, disse-me:
– "Estou
encantado com ela! Se tudo der certo, até o final do ano nos casaremos.
Venho morar em São Paulo, porque ela já está empregada, e para mim é mais
fácil arrumar emprego".
Roberto, rapaz
tetraplégico, me disse:
"– Agora tenho
um pouco de felicidade. Muriel, agora eu posso dizer que sou tetraplégico.
Muito obrigado. Deus te abençoe".
Ainda muito
emocionada com as palavras de Roberto, vi Ariel, o moço que estava sentado
ao lado de Rita, levantar-se e ir até o rapaz que tocava piano. Chegando
lá, falou ao seu ouvido qualquer coisa e voltou para a mesa.
Colocando-se em pé,
o pianista disse:
– A música que vou
tocar agora o Ariel oferece à senhorita Rita de Cássia.
Rita sorriu, eu
sorri e todos bateram palmas. A música era linda e muito romântica.
Algum tempo depois,
Rita também foi ao pianista e falou algo baixinho.
De novo, ouvi o
pianista falar:
– Essa música é
oferecida ao Ariel. Quem a oferece é Rita de Cássia.
Todos que estavam
presentes no restaurante compreenderam aquela demonstração de carinho de
ambos e aplaudiram... Eu sorri.
Nesse dia nascia
uma grande amizade entre minha filha e Ariel e entre muitos casais que ali
estavam.
As horas passaram
rapidamente, o almoço chegou ao fim, todos estavam se despedindo, quando
Ariel se aproximou de mim e me pediu uma caneta. Emprestei-lhe a caneta,
ele a deu para Rita e ternamente eu a vi escrever o telefone dele num
guardanapo.
RITA E ARIEL
No princípio eram
telefonemas em dias espaçados. Depois as ligações foram aumentando, até
acontecerem várias vezes por dia, todos os dias.
Vieram então os
encontros, no começo, esporádicos. Depois começaram a acontecer todos os
domingos, mas com o passar do tempo, tornaram-se mais assíduos. Todos os
sábados e todos os domingos.
Uma noite, a mãe de
Ariel me telefonou dizendo:
– Muriel, eu vou
viajar este final de semana, mas o Ariel não quer vir comigo. Ele quer
dormir aí na sua casa, você se importa?
Respondi:
– Não me importo.
Ele será recebido como um filho.
Ariel chegou
trazendo sua mochila nas costas e um grande sorriso nos lábios.
Após o jantar, eu o
chamei para uma conversinha:
– Ariel, você está
começando a vir dormir aqui, eu confio em você e sei que você vai
respeitar a Rita. Você sabe o que quer dizer respeitar a namorada?
E ele me respondeu:
– Sei! Fica
tranquila, Muriel. Não vou desrespeitar a Rita.
Sem acreditar muito
nele, no começo eu ficava de olho para ver o que eles estavam fazendo, mas
com o passar dos meses, vi que ele realmente respeitava minha menina.
Foi assim que Ariel
começou a dormir em casa. Ele vinha na sexta-feira à noite e ia embora no
domingo, ao entardecer.
Cada fim de semana
era esperado com muita ansiedade por ambos.
Eram os dias em que
eles passavam mais tempo um ao lado do outro.
Uma sexta-feira,
Ariel ligou para Rita dizendo que ele não poderia vir, pois a mãe ia
viajar e sua avó estava gripada. Ele não queria deixá-la sozinha, por isso
ia dormir com ela. Perguntou se a Rita não podia ir dormir lá também.
Quando Rita me
perguntou se podia dormir lá, logo pensei: “A avó está doente, vai deitar
cedo. Lá ele está no ‘terreno’ dele, será que não vai extrapolar nas
carícias?”.
Minha filha nunca
tinha ido dormir na casa de ninguém. Meio amedrontada com meus
pensamentos, respondi:
– Não!
Imediatamente vi
suas lágrimas correrem. Ao telefone, chorando, informou a ele que eu não a
tinha deixado ir.
Depois de desligar,
disse-me:
– Mãe, quando falei
que não ia, ele começou a chorar. Disse que não quer ficar sem me ver este
fim de semana. Olha, mãe, se ele pode dormir aqui em casa, eu também posso
dormir na casa da avó dele.
Por dentro eu
sorri. Aquela baixinha de olhos azuis, minha filhinha, já não era mais uma
menina, era uma moça e estava reivindicando seus direitos... Ela era uma
adolescente igualzinha às outras.
Por causa de seus
argumentos, e confesso que também por pena, pois ambos estavam chorando,
resolvi voltar atrás na minha decisão.
– Está bem, está
bem, você pode ir.
Ela pulou de
alegria, saiu correndo, ligou pra ele. Abraçou-me e me deu vários beijos.
Arrumou suas coisas com tanta alegria e felicidade que chegou a me
comover.
Como de costume,
conversei em meus pensamentos com Deus:
“Deus, é tão pouco
o que ela pediu, mas esse “tão pouco” a deixou tão feliz! Seria tão bom se
todas as pessoas ditas normais pudessem se alegrar com as pequenas dádivas
que a vida oferece a cada momento, assim como minha filha o fez agora”.
E foi assim que
Rita começou a dormir na casa do namorado.
SELANDO UM
COMPROMISSO
Rita e Ariel já
estavam namorando há um ano e meio quando, seguindo o exemplo de meu filho
e sua namorada, resolveram colocar uma aliança de compromisso. Corinne,
mãe do Ariel, concordou com a ideia e foi com eles comprar as alianças.
Eu vivia um dia de
cada vez. Por não saber se, algum dia, Rita e Ariel ficariam noivos de
verdade, no dia da troca de alianças, fiz uma bonita festa em minha casa.
Havia um bolo ornamentado com duas alianças, muitos docinhos e sanduíches.
Tiramos muitas fotos e
também filmamos.
Apesar da família
do Ariel não estar presente, ele sorria o tempo inteiro. Rita também
sorria muito e em seus olhos havia um brilho intenso de felicidade.
O entrosamento dos
dois era tão grande que, juntos, começaram a fazer teatro, pontas em
novelas e a ir comigo fazer palestras sobre a Síndrome de Down. Nessas
palestras, davam depoimentos de que tudo é possível, e, por isso, foram
chamados para fazerem um curta-metragem, o documentário Do luto à luta.
O tempo foi
passando e, por estarem se amando cada dia mais, eles quiseram noivar de
verdade. Com alegria, eu, Rita, Corinne e Ariel fomos a uma joalheria para
que escolhessem as alianças.
No dia do noivado,
a sala de jantar de minha casa estava lindamente preparada. Minha irmã
Paulina havia decorado as paredes com faixas de felicitações e fotos do
casal. Em cada canto da sala havia flores. Na mesa, uma toalha de renda
branca e, sobre ela, um
pequeno castelo
cor-de-rosa, todo iluminado. No centro da mesa, um bolo branco com
florezinhas comestíveis, na cor rosa, e, em cima dele, uma caixinha
vermelha, com as duas alianças.
Os pratos de doces
e salgados, além de enfeitarem também a mesa, estavam distribuídos
harmoniosamente por todo o ambiente. A decoração que minha irmã fizera
estava maravilhosa.
Ariel estava
elegante. Rita estava muito bela em seu vestido branco e justo. Seus
cabelos soltos emolduravam seu rosto e, como sempre, seus belos olhos
azuis brilhavam de felicidade.
Chegou o momento
tão esperado. Antes da troca das alianças, Ariel disse algumas palavras.
Logo a seguir foi a vez de Rita, e ela fez uma linda declaração de amor ao
seu amado. Todos nós notamos o olhar carinhoso de ambos ao colocarem, um
no outro, a aliança. Ao fazerem o brinde, seus olhos cintilavam de tanta
felicidade. Erguendo
nossas taças,
brindamos alegremente o noivado desse casal tão querido.
O amor foi
crescendo dia a dia. Sem conseguirem mais viver longe um do outro,
resolveram se casar. Os preparativos para o casamento começaram a ser
feitos com muita alegria pelas famílias. Surgiu, então, uma dúvida: Ariel
seria ou não estéril? Corinne resolveu levar seu filho para realizar o exame
que nos tiraria a dúvida.
Ao contrário do que
alguns médicos disseram, Ariel poderia ter filhos.
Expliquei ao Ariel
que Rita poderia tomar anticoncepcional, mas que isso poderia fazer mal
para ela ou engordá-la. Expliquei ainda que ela nunca poderia se esquecer
de tomar o anticoncepcional, pois eles corriam o risco de ter um filho
Down. Depois, mostrando
foto na internet,
expliquei que ele poderia fazer uma vasectomia e isso evitaria
definitivamente de eles terem filhos. Em um gesto de amor à sua futura
esposa, ele escolheu de livre e espontânea vontade fazer a cirurgia.
O PRECONCEITO DA
IGREJA CATÓLICA
Por Ariel ser judeu
e Rita católica, o casamento seria ecumênico.
Quanto à
contratação do rabino, não houve nenhum problema, mas, quando procurei um
padre para realizar o casamento, começou a minha via crucis. Fui a várias
igrejas, mas todos os padres se recusaram a fazer o casamento. Um deles
“bondosamente” se ofereceu para fazer o casamento, mas de portas fechadas,
sem que ninguém visse.
Diante de tanta
dificuldade, resolvi ir à Cúria Metropolitana do Estado de São Paulo –
talvez o monsenhor não soubesse do preconceito que havia entre os padres.
Fui à Cúria no dia
6 de abril de 2003 e lá fui atendida pelo cônego.
Expliquei-lhe o que
estava acontecendo e pedi que me indicasse um padre para fazer o casamento
de minha filha.
Não vi no rosto
desse senhor um sorriso... Sequer vi em seu semblante complacência.
Levantando-se de sua cadeira e sem ao menos estender a mão para nos
despedirmos, disse secamente:
– A senhora espere
uma semana, preciso conversar com outras pessoas.
Eu esperei os sete
dias recomendados, mas ele não ligou para me dar uma resposta.
Ainda assim esperei
sua ligação por um mês, até o dia 6 de maio de 2003. Como a ligação não
aconteceu, liguei novamente. De novo falei com o mesmo cônego. Mais uma
vez, ele mandou que eu aguardasse uma semana, pois não tinha ainda uma
resposta.
E assim foi a cada
ligação que eu fazia.
Depois de ter sido
ludibriada por 4 meses, fui à Cúria falar, novamente, com o cônego com
quem já falara outras vezes. Exigi dele uma resposta, e ele,
estupidamente, respondeu:
– A senhora está
fazendo tudo isso porque é uma mãe frustrada - Reproduzo as falas do cônego
fielmente, exatamente como foram ditas - quer se realizar através de sua
filha, porque ela mesma nem sabe o que está acontecendo.
Respondi que não
era verdade, que eu já havia me casado na igreja. E que era o sonho da
minha filha se casar em nossa religião.
Então ele, mesmo
sem conhecer os noivos, continuou:
– A Igreja Católica
não faz casamento de retardados. Retardados não se casam. Eles não sabem o
que estão fazendo.
Perguntei a ele em
que lugar da Bíblia estava escrito isso, mas ele não respondeu. Nem
poderia. Essa besteira que ele disse não está escrito em lugar nenhum da
Bíblia porque, perante Deus, somos todos iguais.
As palavras
pronunciadas por esse cônego saíram de uma mente mesquinha, de um homem
preconceituoso, que acha que tem todo o poder, mas não tem nenhum.
Muito irritada,
falei que iria contratar um pastor da igreja evangélica para casar minha
filha, pois Deus era um só. Falei também que iria contratar vários jornais
para fazer a reportagem do casamento e que, antes da cerimônia se
realizar, iria pegar o microfone e dizer:
“Senhores
convidados, a partir de hoje, eu e minha família estamos deixando de ser
católicos, pois um cônego, lá na Cúria, disse-me: ‘A Igreja Católica
disse-me através de seu representante, que não casa retardados’. Senhores
repórteres, por favor,
publiquem na
íntegra o que acabei de dizer.”
Depois de dizer
todas essas coisas, saí da Cúria.
Estava acabando de
entrar em casa quando o telefone tocou...
Era o cônego com
quem eu havia falado. Primeiro me disse algumas palavras grosseiras,
depois mandou que eu entrasse em contato com o padre da Igreja Nossa
Senhora da Esperança, em Moema.
Mesmo magoada com
as ofensas ouvidas, fiquei contente porque achei que estava tudo
resolvido. Anotei o telefone que ele me passara e liguei imediatamente
para a igreja.
– Boa tarde, padre,
sou a Muriel, mãe da Rita, o cônego lá da Cúria já deve ter lhe contado
que preciso de um padre, para, juntamente com o rabino, realizar o
casamento, que será ecumênico. Ele pediu que eu lhe ligasse. Então está
tudo certo? Quando posso ir aí?
Ele grosseiramente
respondeu:
– Não tem nada
certo, não. Primeiro preciso ver que tipo de pessoas vocês são.
Desliguei e comecei
a chorar. Disse para meu filho que não queria mais que o padre
participasse do casamento... Não precisávamos dele, afinal Deus é um só.
Pacientemente,
Eduardo me convenceu a ir até a Igreja Nossa Senhora da Esperança.
Conversamos com o padre por horas, até que, finalmente e friamente, ele
disse que estaria presente na cerimônia.
O GRANDE DIA
Os preparativos
Corinne, dedicada
mãe do Ariel, preservando-nos de cansaço e contratempos, incansavelmente
se disponibilizou para resolver os problemas com o buffet, a data, a hora,
a ornamentação das mesas e as flores para o casamento.
Coube ao casal
escolher as músicas que tocariam durante a cerimônia.
Rita, cheia de
personalidade, trocou o tapete escolhido por Corinne por um vermelho.
O local escolhido
foi o Buffet Humberto14, um dos mais famosos buffets da época. Ele era
lindo, bem no coração do Itaim Bibi. A data escolhida por Corinne, foi o dia
23 de novembro 2003, às 11 da manhã.
VÉSPERA DO
CASAMENTO
Na véspera do
casamento, Rita mostrava-se feliz e ansiosa, ria, brincava, perguntava a
todo momento as horas. À noite, deitada sobre meu braço, ela me falava da
alegria que estava sentindo. Nunca vou esquecer quando ela me disse:
– Mãe, eu sou igual
a minha prima Daniela. Como ela, também vou me casar.
Abracei Rita forte
e falei:
– É sim, filha,
você é igual a suas primas e a todas as moças do mundo inteiro.
Ainda bem que na
escuridão não deu para ela perceber que lágrimas de felicidade rolavam
mansamente pelo meu rosto.
O AMBIENTE
O salão foi
dividido com cortinas de seda branca. A parte menor transformou-se em
“sinagoga”. Estava maravilhosa, toda ornamentada com rosas vermelhas e
brancas. No chão, o longo tapete vermelho dava suntuosidade ao local. A
chupá (tenda), onde o padre e o rabino José Luiz Goldfarb esperavam pelos
noivos, estava ornamentada, em suas
laterais, também
por rosas brancas e vermelhas, combinando com a decoração dos bancos.
Do outro lado, o
salão de festa. As cadeiras cobertas por capas brancas no mesmo tecido e
cor que as toalhas das mesas, nas quais estavam os pratos nos sous-plats e
um vaso de vidro com rosas brancas e vermelhas, criavam um conjunto de muita
sobriedade e beleza.
Estava tudo
divinamente lindo!
OS NOIVOS
Como o casamento
seria num domingo, combinei antecipadamente com a cabeleireira para nos
atender neste dia. Logo cedo meu marido nos levou ao salão.
Eu tinha pensado em
fazer no cabelo dela uma trança enfeitada com pérolas, mas a cabeleireira
sugeriu fazer um coque, prendendo todo o cabelo, e deixar apenas uma leve
franja. O coque com mechas entremeadas ficou formoso, dava à Rita um ar de
princesa.
Achei o coque tão
simpático que pedi para que a cabeleireira fizesse o mesmo com meu cabelo.
Minha irmã Paulina
e sua filha Isabel, deixando seus afazeres, chegaram em minha casa com uma
maletinha de maquiagem logo após termos voltado do cabeleireiro.
Depois de tomar um
cafezinho, Paulina começou a maquiar Ritinha.
Sobre sua pele
passou uma base clara, levemente rosada; nas pálpebras superiores, sombra
azul clarinha; em seus lábios, um batom coral.
Mesmo não sendo
profissional, minha irmã fizera uma maquiagem muito benfeita, suave,
apropriada para a hora e para aquele dia tão especial.
Maquiada, minha
filha ficou ainda mais graciosa!
Após a maquiagem,
Rita subiu para o quarto para se vestir. Ao descer as escadas, de volta,
todos que estavam na sala ficaram encantados...
Ela estava
deslumbrante em seu vestido de noiva todo branco, cravejado de pérolas e
pequeninos vidrilhos, com as alças em tule, levemente franzidas, dando-lhe
leveza. A faixa de cetim, drapeada, no corpo do vestido, marcava com
suavidade a cinturinha dela. A calda de dois metros e meio, presa na
cintura, igualmente bordada, compunha o vestido. A coroa de pérolas sobre
seus cabelos presos segurava com firmeza as três camadas de véu, ficando
uma na altura dos ombros e as duas outras um pouco mais além.
Nas mãos ela trazia
um buquê cascata, com pequenas rosas vermelhas, entremeadas por ramagem
verde e pequeninas flores brancas, conhecidas popularmente por
mosquitinhos.
Ao som da marcha
nupcial, Carlos entrou, orgulhosamente, com Rita. Com muita dificuldade,
continha as lágrimas que começavam a brotar em seus olhos. Foi a primeira
vez na vida que vi meu marido emocionado.
As pessoas ali
presentes choravam de emoção ao vê-la passar.
Ao vê-la entrar, de
braço dado com o pai, em seu belíssimo vestido, um turbilhão de
sentimentos tomou conta de mim. Veio-me à mente toda a sua vida, desde o
dia do seu nascimento; todas as lutas que tive para que ela chegasse até
ali.
Lembrei-me do
aparelho ortopédico que ela teve que usar por três anos - igual aos que
são usados por pessoas que tiveram paralisia infantil. Era preso na cintura,
com um cinto de ferro coberto de feltro.
Tinha de cada lado
ferros que desciam da cintura até os tornozelos, e, na altura dos joelhos,
uma pequena alavanca que lhe permitia dobrar as pernas ao sentar. Na
ponta, próximo dos tornozelos, as botas eram presas por molas fortíssimas.
Antes de calçar-lhe as botas, eu precisava rodá-las uma vez, para que
forçassem seus pés para fora...
Agora ela estava
livre de tudo isso... Muito emocionada, sorri para não chorar!
Agradeci a Deus por
Ele ter segurado minha mão, ter me sustentado tantas vezes, ajudando-me a
cumprir minha missão.
Ariel, próximo à
chupá, estava muito lindo, elegantemente vestido em seu terno cinza-claro.
Trazia no bolsinho, próximo à lapela, uma pequena rosa branca, e sobre a
cabeça, o kipá - boina que os judeus usam. Envolvido pelos acontecimentos
emocionantes, ele deixava as lágrimas correrem ao ver Rita caminhando ao
seu encontro. Enterneci-me também quando vi meu marido entregar-lhe nossa
filha.
A CERIMONIA
Ao iniciar-se a
cerimônia, o padre leu apenas o evangelho e, a seguir, uma poesia do
Carlos Drummond de Andrade. Nada mais fez depois disso. A cerimônia
inteira foi dirigida pelo rabino, que foi quem deu a bênção aos noivos,
oferecendo ao casal, logo
após, uma taça com
vinho.
Ariel, seguindo a
tradição judaica, tomou o vinho (um gole). A seguir, passou a taça para
Rita, que também tomou um gole.
Continuando a
cerimônia, chegou o momento da troca das alianças.
Ariel segurou a
aliança com as duas mãos e falou:
– Rita, eu te
consagro com este anel de acordo com as leis de Moisés e Israel.
E colocou a aliança
no dedo de Rita, beijando depois sua mão.
Não consegui conter
as lágrimas, quando, antes de colocar a aliança no dedo de Ariel, Rita
virou-se para todos os presentes e disse:
– Eu prometo a
vocês que vou cuidar do Ariel. Ficar sempre ao lado do Ariel e nunca vou
me separar dele.
Ninguém esperava
uma coisa assim... Como não chorar?!
Segurando a mão do
Ariel e, olhando em seus olhos, Rita disse em voz alta, para que todos
pudessem ouvir:
– Vou te amar para
sempre!
Após ter colocado a
aliança no dedo dele, também deu um beijo em sua mão.
Gotinhas salgadas
teimavam em rolar pelo rosto dos pais, parentes, convidados e padrinhos ao
ouvirem, ao som de “Eu Juro”, o casalzinho fazer suas juras de amor.
A seguir foi feita
a leitura da Ketubá (contrato nupcial) com o texto na língua aramaica. No
casamento, o noivo aceita para si algumas responsabilidades matrimoniais.
A sua obrigação principal é prover alimentos, abrigo e roupas para sua
esposa, e ser atencioso com relação às suas necessidades emocionais. A
proteção dos direitos de uma esposa judia é tão importante que o casamento
só pode ser formalizado após a leitura completa do contrato.
Depois passou-se às
Sete Bênçãos (Sheva Brachot), recitadas sobre um segundo copo de vinho.
Essas bênçãos ligam o noivo e a noiva para a fé em Deus como Criador do
mundo, maior benfeitor da alegria e do amor.
No final das Sete
Bênçãos, novamente foi oferecida a Rita e Ariel a segunda taça de vinho.
Como nenhum dos dois bebe, eles apenas deram um gole. Primeiro Ariel;
depois, Rita.
Mais algumas
palavras do rabino e então foi colocado no chão,
em frente ao Ariel,
um copo enrolado num pano branco. Ariel, batendo fortemente o pé em cima
do copo, o quebrou. Esse gesto marcou a conclusão da cerimônia.
No final da
cerimônia pedi ao padre que desse uma bênção aos noivos, mas ele,
demonstrando claramente seu preconceito, sem dá--la, virou as costas e saiu.
Os presentes
ficaram em pé. Todos os convidados judeus começaram a falar várias vezes,
bem alto e em coro: “Mazel Tov”.
Os
noivos, então, cheios de alegria, se retiraram ao som de uma música muito
romântica.
Por essa razão,
embora já tenham se passado mais de 10 anos, eu nunca me esqueci nem me
esquecerei do Rabino José Luiz Goldfarb. Não esqueço a forma carinhosa
como ele realizou o casamento de Rita e Ariel no dia 23 de novembro de
2003.
Desde esse dia,
coloco-o sempre em minhas preces, peço a Deus para que Ele o proteja, que
conserve sempre esse amor imenso que habita em seu coração.
Ao comentar sobre o
casamento de minha filha, falo para aqueles que me ouvem que esse rabino é
realmente um homem de Deus, no verdadeiro sentido da expressão, porque não
tem preconceito. Fez o enlace de Rita e Ariel com muito carinho e ternura,
comovendo a
todos até as
lágrimas, tornando essa união matrimonial, a primeira entre jovens com
Síndrome de Down plenamente abençoada.
RITUAL DE
FELICIDADE
Os presentes foram
convidados a se dirigir ao salão de recepção.
Depois que todos já
estavam acomodados nos seus lugares, a cantora anunciou a entrada do
casal. Eles fizeram uma entrada triunfal ao som da música “Eterno
Aprendiz”. A cantora começou a cantar:
“Viver e não ter a
vergonha de ser feliz”, e os presentes cantaram juntos. Foi muito
emocionante.
A seguir, foram de
mesa em mesa cumprimentando a todos. Terminados os cumprimentos, foram
chamados para fazer o brinde junto com seus familiares e cortar o bolo.
Então cada um foi erguido numa cadeira. A cadeira era segurada, pelos pés,
por 4 pessoas, conforme a tradição judaica. A música começou a tocar e as
pessoas dançavam com eles, impulsionando as cadeiras para cima.
Quando esse ritual
acabou, Rita e Ariel foram chamados ao palco.
Como o Ariel faria
aniversário dali a dois dias, em 25 de novembro, pela passagem de seu
aniversário, foi-lhe oferecido um bolo. Todos cantaram parabéns e ele
apagou a velinha.
Rita, aproveitando
que estava no palco, fez um belo discurso. Depois anunciou que ia cantar.
Chamou Eduardo ao palco e juntos cantaram “Como é grande o meu amor por
você”. Ao final, Rita disse:
– Mãe, essa música
eu ofereço para você.
Depois cantou com a
cantora outras músicas.
Eles dançaram a
valsa olhando-se nos olhos romanticamente.
Foi tudo um sonho
realizado, muito amor e alegria. Todos estavam empolgados e felizes.
COM QUEM ELES IRIAM
MORAR
Por não querer que
minha filha saísse de casa e fosse morar longe de mim, resolvi fazer uma
pequena reforma em dois quartos grandes que tinha em cima da lavanderia,
nos fundos de casa, com entrada totalmente independente.
A primeira coisa
que fiz foi fazer uma passagem de ligação entre os dois quartos. Depois
disso, mandei fazer o banheiro.
O jardim de
inverno, que ficava em cima da garagem, dava para os quartos. Dele, então,
fiz a cozinha. Para finalizar, abri uma passagem interna do meu quarto
para a casa deles, assim eles não precisariam sair para poder entrar na
minha casa.
Corinne também,
querendo o filho junto a si, fez em seu apartamento uma reforma.
Derrubando algumas paredes, fez um quarto-sala, um closet e banheiro. Criou,
dessa forma, um espaço independente muito agradável para o casal.
Após a lua de mel,
para minha surpresa, a Rita foi morar com a sogra. Por opção, disse-me:
– Mãe, vou morar
com minha sogra, porque se ficar aqui não parece que casei.
Rita foi levando as
coisas dela para a casa da sogra. Ao vê-la partir, senti um aperto no
coração. Nunca antes havia me separado da minha filha. À noite senti tanto
a falta dela que não consegui dormir.
Meu marido não
conseguia entender esse meu sentimento:
– Ela foi morar na
sogra porque quis, por que você está chorando?
Como explicar-lhe
esse sentimento tão doído?
Aquela noite chorei
muito por estar longe da minha filha, mas, passado esse momento, agradeci
a Deus. Eu a criei para ser independente e ela demonstrou que o é. Mas,
não posso negar: mesmo Rita vindo me visitar muitas vezes, ficar comigo
alguns dias, nunca me acostumei a ficar sem ela. Todas as vezes que ela
vem me visitar, quando a vejo ir embora, bate uma saudade sem fim, sinto
vontade de chorar.
TRÊS ANOS DEPOIS...
Três anos depois do
casamento de Rita e Ariel, cheia de satisfação, levei meu filho ao altar.
Foi com muita
emoção que vi Eduardo e Giuliana se unirem perante Deus e os homens. Ele,
com sua elegante túnica bege, acompanhada de colete da mesma cor, parecia
um príncipe. E Giu, em seu delicado modelo tomara que caia branco, estava
majestosa. Foi uma cerimônia comovente. A festa animada, parentes e amigos
participando com felicidade do evento.
O MUNDO SE ABRIU
PARA RITA E ARIEL
Com seu marido,
Rita participou da novela Jamais te esquecerei, no SBT. Por causa disso,
Evaldo Mocarzel os convidou para participarem de um documentário, que
recebeu o nome Do Luto à Luta.
No Rio Grande do
Sul, em Gramado, no ano de 2005, Rita e Ariel subiram ao palco e ergueram
o troféu Kikito, que o filme Do Luto à Luta ganhou.
Ao assistir a esse
documentário, o produtor Marcelo Galvão convidou Rita e Ariel para
participarem, como atores principais, do filme Colegas. O filme ganhou, no
40º Festival de Gramado, no dia 18 de agosto de 2012, o troféu Kikito. E
Rita e Ariel receberam também,
cada um deles, o
troféu, prêmio especial, como Melhor Atriz e Melhor Ator, respectivamente.
Foram inúmeros
prêmios recebidos por Colegas, entre eles:
• Prêmio Jovem
Brasileiro - Categoria Entretenimento/Cinema;
• Diva Film
Festival (Chile) - Melhor Direção, para Marcelo Galvão; Melhor Direção de
Arte, para Zenor Ribas, e Melhor Trilha
Sonora, para Ed Côrtes;
• 36ª Mostra
Internacional de Cinema de São Paulo - Prêmio do público, Melhor Filme
Brasileiro;
• Troféu Juventude
- Melhor Filme Brasileiro;
• 1º Festival de
Cinema de Paulínia 2008 - Prêmio de Melhor Roteiro;
• 6º International Disability Film Festival
Breaking Down Barriers - Rússia - Prêmio de
Melhor Filme;
• Festival do Rio
Hors - Concours 2012 - Seleção Oficial;
• XXVII Festival de
Cinema Latino-Americano di Trieste (Itália) - Prêmio do Público;
• 9º Amazonas Film
Festival - Filme de abertura; Red Rock Film Festival (Utah - EUA) -
Seleção Oficial.
(...)
E CARLOS SE FOI
PARA SEMPRE
Carlos começou
sentir fortes dores na barriga, preocupada com ele, pedi ao meu filho para
levá-lo ao hospital. Foi constatado um quadro grave quadro de
diverticulite, e por isso ficou internado para ser operado pela manhã.
Infelizmente a
cirurgia não correu bem, e ele entrou em coma durante a operação.
Permaneceu em coma por 30 dias, vindo a falecer.
Quando soube que o
pai tinha falecido, meu filho chorou copiosamente.
Olhando pra mim,
com seus olhos verdes marejados de
lágrimas, disse:
– Mãe, não adianta
eu sentar no degrau da porta para esperar por ele, como fiz quando eu era
pequeno e ele foi embora. Agora ele não volta nunca mais.
PASSADO O DESESPERO
Passado nosso
desespero, ficaram as dívidas. As despesas da casa tornaram-se pesadas
para mim, pois agora eu só tinha a minha aposentadoria, que mal dava para
viver.
Para conseguir
pagar todas as contas, deixei de fazer feira e de comprar algumas coisas
no supermercado.
Um dia, meu filho chegou trazendo uma grande caixa de papelão sobre os ombros. Sorrindo, disse:
Um dia, meu filho chegou trazendo uma grande caixa de papelão sobre os ombros. Sorrindo, disse:
– Mãe, esta é a
minha cesta básica, trouxe-a porque sei que as coisas não estão fáceis
para você.
Como não me
emocionar? Chorei.
A VIDA SE RENOVA
Depois de três anos
após terem se casado, Eduardo e Giuliana anunciaram que meu neto viria
alegrar a minha vida.
(...)
#Down #Sindrome_de_down
#Down #Sindrome_de_down
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